Um cadáver no banco, um meme no celular
A sociedade do espetáculo se apresenta em sua forma mais
cruel, casada com a alta tecnologia que permite
atrocidades com a velocidade de um clique
Renato de Faria | 28/04/2024
Uma sociedade produtiva e eficiente, idólatra da
pura razão instrumental, dá passos certeiros em direção
[a]1 barbárie. A técnica, por si só, é carente de reflexão
ética, pois esse modo de pensar exige tempo, ócio e
debate. Os burocratas da tecnoidolatria, tendo em vista
seu baixo vocabulário e sua curtíssima carta de leitura,
desconhecem a importância do desenvolvimento moral.
É por isso que a inovação tecnológica, isolada das
Humanidades, não nos levará [a]2
lugar algum.
Diariamente, constatamos as ações
inconsequentes na Rede, nos assustando quanto [a]3
escalada da BOÇALIDADE/BOSSALIDADE que impera nessa
terra sem lei e sem reflexão ética.
Assistimos [a]4 uma delas, estarrecidos, nos
últimos dias: cenas macabras que mostravam um cadáver
sendo levado [a]5 uma agência bancária. Não era filme de
terror, era a vida em carne e nosso. Confesso que resisti a
ver a cena. Apenas o relato bastava. A cultura da imagem
escandalosa, comum em nosso tempo, não acrescentaria
nada em minha reflexão.
Porém, mesmo negando o acesso às cenas e todo
o seu SENSSACIONALISMO/SENSACIONALISMO midiático,
propício à indústria jornalística do escândalo, em pouco
tempo, meu telefone já se encontrava infestado com a
enxurrada de memes, figurinhas e cenas que retratavam o
próprio corpo, vilipendiado pela segunda vez, em situações
constrangedoras.
Já defendi (e defendo!) [...] a ironia como
sobrevivência, como prática de resistência à vida
burocratizada e contabilizada. Com isso, reafirmo que o
humor é uma das poucas formas que sobraram de uma
humanidade corrompida. No entanto, a questão é bem
diferente. Os memes, produzidos pelo concreto do corpo
representado, ultrapassam qualquer limite ético. Isso não
é piada, é sadismo puro, PERVERCIDADE/PERVERSIDADE
customizada por aplicativo e compartilhada por alguns
que, dessensibilizados pelo cotidiano maldoso que infesta
os suportes digitais, ainda dizem, "deixa de ser careta,
moralista, isso é apenas uma imagem, uma brincadeira".
Não, meu amigo. Sinto em informar, não é apenas uma
piada.
Uma das cenas mais tristes da Ilíada é justamente
quando Aquiles, herói grego, após vencer o nobre Heitor
em um duelo de honra, amarra seu cadáver à carruagem e
o arrasta diante dos muros de Troia. Príamo, seu pai e Rei
daquela cidade, e Andrómaca, sua esposa, presenciaram o
vilipêndio e nada puderam fazer. Na guerra, os bárbaros
mostram toda sua voracidade, literalmente, dançando
sobre o corpo alheio.
Estamos construindo uma forma de convivência
que desconsidera qualquer limite moral. Os devotos da
tecnoidolatria se comportam como Eichmann (o burocrata
nazista relatado por Hannah Arendt), cheios de clichês,
esquivando-se da corresponsabilidade no
compartilhamento das imagens e sem a noção profunda
do mal que estão fazendo.
É preciso lembrar que essa civilização já não nos
oferece nenhuma garantia, caso caiamos desmaiados em
algum lugar por aí, sejamos atropelados ou soframos
algum acidente. Em poucas horas, nossos filhos, esposa,
mãe e pai verão a cena de nosso corpo sem vida
compartilhada nos grupos de WhatsApp da família, do
futebol e da igreja. A sociedade do espetáculo se
apresenta em sua forma mais cruel, casada com a alta
tecnologia que permite ATROCIDADES/ATROÇIDADES com
a velocidade de um clique.
Certo dia, ouvi alguém dizendo: "sossego mesmo
só quando estivermos comendo capim pela raiz, quando
esticarmos a canela e fecharmos o paletó de madeira".
Agora, acho que nem isso... Com muitas câmeras nas mãos
e nenhuma ideia na cabeça, perdemos até o direito a essa
paz eterna.
FARIA, Renato de. Um cadáver no banco, um meme no celular. Estado de
Minas, 28 de abril de 2024. Disponível em:
https://www.em.com.br/colunistas/filosofiaexplicadinha/2024/04/6846875-um-cadaver-no-banco-um-meme-nocelular.html. Acesso em: 29 abr. 2024. Adaptado.