Atenção: Considere o texto “A irresistível ascensão do boto”, de Marcelo Leite, para responder à questão.
Diz a lenda amazônica que os botos saem do rio, se transformam em moços formosos e conquistam as
donzelas, engravidando-as. Vaidoso, na forma humana leva sempre um chapéu na cabeça, supostamente para
cobrir o orifício reminiscente da existência aquática. Pode não ser verdade, mas serve como justificação para
barrigas inexplicáveis pela ausência de marido. Bem ao modo da natureza social da Amazônia, onde bichos
costumam virar gente, e vice-versa. O trânsito de jabutis, onças, peixes e botos entre o que nós, de fora,
enxergamos como dois mundos é um verdadeiro carnaval.
Mitos e causos à parte, não é que a ciência revela o que os amazônidas já sabiam? Botos machos são
mesmo galantes. Como seus primos humanos, muitas vezes partem para atrair fêmeas com um ramalhete —
não de flores, mas de plantas aquáticas. Essa imitação barata do comportamento humano é pesquisada por
Vera Maria Ferreira da Silva, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), e Tony Martin, do Serviço
Antártico Britânico. Não deixa de ser irônico que a instituição de Martin promova estudos em plena região
equatorial. Nem, tampouco, que o estudo de Silva se torne público no Brasil por intermédio de uma revista de
divulgação britânica, a New Scientist.
Silva e Martin estudaram bolos-lucuxis por três anos na região amazônica. Avistaram mais de 6.000
grupos em Mamirauá, Tefé (oeste do Estado do Amazonas). Em mais de 200 dessas observações havia um
indivíduo carregando objetos com o bico, como um maço de ervas ou um pedaço de pau. Em geral o portador
era um macho. Era, portanto, forte a sugestão de que se trata de um comportamento sexual. Para comprovar
sua hipótese, Silva e Martin buscaram o socorro da genética. Os resultados preliminares indicam que os mais
assíduos portadores de ramos e paus seriam também os reprodutores mais bem-sucedidos. Em português
claro, O comportamento seria uma forma de exibicionismo — no bom sentido. Machos exibem objetos
vistosos para se valorizar sexualmente aos olhos das fêmeas.
O curioso é encontrar o expediente só em alguns grupos isolados desses cetáceos. O padrão parece
sugerir que O comportamento só faz parte do repertório de alguns bandos, disseminando-se neles, ou para
outros, por imitação e aprendizado. Numa única e controversa palavra, cultura. Não faz muito tempo, essa era
uma noção que só fazia sentido aplicar a humanos. “Cultura”, afinal, sempre foi entendida como o oposto de
“natureza”. A fronteira, tão cara às ciências humanas, foi ficando menos nítida com as sucessivas
documentações, por vários grupos de pesquisa, do uso de ferramentas por outros primatas. Pelo visto, O boto
está prestes a subir na escala social.
(Adaptado de: LEITE, Marcelo. Ciência: use com cuidado. Campinas: Editora da Unicamp, 2014)