Os pais encolhem com o tempo?
Olho para o seu olhar. Busco perceber para onde mira. Confiro se sua passada está firme o bastante para não tropeçar na
travessia. Não confio nos seus joelhos. Empresto os meus. Dou o braço, finco as solas no asfalto e caminho com ela, que antes era
gigante, enorme, com a cabeça sempre nublada no alto das ideias e das preocupações.
Agora, pequena, frágil, assim como o seu companheiro de décadas – ontem uma tempestade, hoje garoa fina acompanhada pelo som do rádio FM. São ambos estações transitórias; ela primavera, ele outono. Os pais encolhem com o tempo.
“Cada vez mais eles estão parecendo crianças”, lê-se, ouve-se, vê-se por aí e por aqui tal comentário. Há quem o justifique
com relatos concretos; ora, afinal já esquecem, os pais, de apagar a luz, de como manejar alguma ferramenta básica, de algumas
palavras e seus significados, de manter o equilíbrio do corpo e a velocidade dos pensamentos, de aprender o novo que a cada dia
se faz por meio de tecnologias, linguagem, imagens e afins.
O comportamento começa a ser sempre infantilizado quando se apontam limitações e falta de preparo para viver com segurança no presente impaciente. Tudo sempre ligado ao corpo – e não à memória, lembrança, história –, como se ele, em absoluto,
definisse a identidade social dos mais antigos. São corpos cansados, logo as mentes, os sentimentos e o saber também, pensam
as crias, como se a corporalidade emoldurasse a grandeza da obra de uma vida toda, ainda vívida, importante ressaltar. Há quem
veja por outra perspectiva menos limitante e mais constante o envelhecer dos seus e suas. O tempo cresce com os pais.
Quando estudava sobre as concepções de pessoa e bases das identidades sociais de povos africanos pré-coloniais, deparei com a noção de senioridade dos iorubás. Em suma, o respeito às mais velhas não é fruto somente do cuidado com fragilidades
físicas, em solidariedade – para não dizer piedade – com o corpo, a partir do corpo, como é frequentemente visto no ocidente. Esse
respeito, que pode ser conhecido por meio de leituras não europeizadas a respeito das sociedades iorubanas, vem justamente da
noção de que existe ancestralidade, sabedoria, liderança e que tais elementos não se resumem à visão ocidental de “poder, comando, governo, privilégio”.
Muito pelo contrário, trata-se de responsabilidade com seu povo, um papel fundamental para a sobrevivência das gerações.
Por essa razão – e tantas outras ligadas à senioridade – o respeito às antigas e aos antigos reflete a reverência à ancestralidade e
à própria comunidade em que se vive. É um respeito que está para além do corpo “debilitado”. Trata-se de um respeito intangível,
logo, indestrutível e atemporal.
Sinto-me, por vezes, pai dos meus pais. Sou cada vez mais responsável por manter sua segurança, garantir que consigam
se sustentar. E sinto-me bem, ainda que auto pressionado pela necessidade de renda, moradia, acesso à saúde, qualidade de vida
que tanto falta. A realidade de quem é filho cuja herança foi o “Silva Santos” em muito é essa e a felicidade não poderia revelar-se
de outra maneira senão quando conseguimos dar aos nossos “velhos” algo de que precisam ou, mais do que isso, algo que eles
querem.
Mãe, vó, pai, vô, se a cada ano se tornam mais “crianças”, o que nós, os ditos adultos – para eles eternos pivetes –, enxergamos diante de tal impressão? Prefiro eu o olhar de aprendizado perante quem do mundo sabe o essencial e não se curva diante
das falsas complexidades impostas pela contemporaneidade.
Se por “infantil” se limita apenas a percepção quanto a funções físicas de um corpo que está constantemente se transformando, perde-se a oportunidade única de compreender a passagem do tempo em seres que encolhem sem perder a grandeza.
Seres que fazem do tempo o paradoxo de encolher para crescer definitivamente.
Toda vez que dou meu braço para que mãe se apoie enquanto atravessamos a rua, também sou eu a me sentir seguro. De
repente, duas crianças, em tempos diferentes, se arriscando a viver.
(SANTOS, Veny. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/veny-santos/2024/04/os-pais-encolhem-com-o-tempo.shtml. Acesso em: 22 abr. 2024.)