Escutatória
Faz muito tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás, duas mulheres conversavam. Uma delas contava para a amiga os seus sofrimentos. (Contoume uma amiga, nordestina, que o jogo que as mulheres do Nordeste gostam de
fazer quando conversam umas com as outras é comparar sofrimentos. Quanto
maior o sofrimento, mais bonitas são a mulher e a sua vida. Conversar é a arte de
produzir-se literariamente como mulher de sofrimentos. Acho que foi lá que a ópera
foi inventada. A alma é uma literatura. É nisso que se baseia a psicanálise...). Voltando ao ônibus. Falavam de sofrimentos. Uma delas contava do marido hospitalizado, dos médicos, dos exames complicados, das injeções na veia — a enfermeira nunca acertava —, dos vômitos e das urinas. Era um relato comovente de
dor. Até que o relato chegou ao fim, esperando, evidentemente, o aplauso, a admiração, uma palavra de acolhimento na alma da outra que, supostamente, ouvia.
Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte: “Mas isso não é nada...”. A segunda
iniciou, então, uma história de sofrimentos incomparavelmente mais terríveis e dignos de uma ópera que os sofrimentos da primeira.
Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o
que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma”. Daí a dificuldade:
a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem
misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele
diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado
por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. No fundo somos todos
iguais às duas mulheres do ônibus. Certo estava Lichtenberg — citado por Murilo
Mendes: “Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas”.
(ALVES, Rubem. O amor que acende a lua. 8. ed. Campinas, SP: Papirus, 1999 –
fragmento).