Leia o texto abaixo para responder a próxima questão.
O vírus da linguagem
Sérgio Rodrigues
O escritor argentino Jorge Luis Borges, que não
era muito simpático à etimologia, apontou a inutilidade de saber que a palavra cálculo veio do latim
“calculus”, pedrinha, em referência aos pedregulhos
que se usavam antigamente para fazer contas.
Tal conhecimento, argumentou o genial autor de
“A Biblioteca de Babel”, não nos permite “dominar os
arcanos da álgebra”. Verdade: ninguém aprende a
calcular estudando etimologia.
O que Borges não disse é que o estudo da história
das palavras abre janelas para como a linguagem
funciona, como produz seus sentidos, que de outro
modo permaneceriam trancadas. É pouco?
Exemplo: a história de “calculus” não ensina ninguém a fazer contas, mas a do vírus ilustra muito
bem o mecanismo infeccioso que opera dentro dos
—e entre os— idiomas.
O latim clássico “virus”, empregado por Cícero e
Virgílio, é a origem óbvia da palavra sob a qual se
abriga a apavorante covid-19. Ao mesmo tempo, é
uma pista falsa.
Cícero e Virgílio não faziam ideia da existência de
um troço chamado vírus. Este só seria descoberto no
século 19, quando o avanço das ciências e da tecnologia já tinha tornado moda recorrer a elementos
gregos e latinos para cunhar novas expressões para
novos fatos.
No caso, nem foi preciso cunhar, bastou buscar
no latim uma palavra pronta, sonora. Seus sentidos
originais, todos vizinhos da sujeira, ajudavam: sumo,
sêmen, veneno, poção, beberagem, linguagem vil.
Contudo, a não ser pelo código genético rastreável em palavras como visgo, viscoso e virulento, fazia
séculos que o “virus” latino hibernava. Foi como metáfora venenosa que, já às portas do século 20, saiu
do frigorífico clássico para voltar ao quentinho das
línguas.
Em 1898, o microbiologista holandês Martinus
Beijerink decidiu batizar assim certo grupo de agentes infecciosos invisíveis aos microscópios de então,
com o qual o francês Louis Pasteur tinha esbarrado
primeiro ao estudar a raiva.
O vírus nasceu na linguagem científica, mas era altamente contagioso. Acabou se tornando epidêmico
no vocabulário comum de diversas línguas.
Quando a gripe espanhola varreu o mundo, em
1918, a humanidade já sabia nomear a coisa. “A linguagem é um vírus”, cantou Laurie Anderson.
É claro que saber de tudo isso não nos protege da
epidemia que bate às portas do país quando ele está
mais frágil, menos funcional, menos inteligente. Borges tem razão em parte.
Ainda não foi descoberto, no entanto, um tema
em que a ignorância seja preferível ao conhecimento.
Já se disse que nomear bem um problema é o primeiro passo para resolvê-lo.
O vírus da palavra penetrou no vocabulário da
computação em 1972, como nome de programas
maliciosos que se infiltram num sistema para, reproduzindo-se, colonizá-lo e infectar outros.
No século 21, com o mundo integrado em rede,
deu até num verbo novo, viralizar. Foi a primeira vez
que um membro da família ganhou sentido positivo,
invejável: fazer sucesso na internet, ser replicado em
larga escala nas redes sociais.
Mesmo essa acepção, como vimos, tinha seu lado
escuro, parente de um uso metafórico bastante popular que a palavra carrega há décadas. No século
passado, tornou-se possível falar em “vírus do fascismo”, por exemplo. Ou “vírus da burrice”.
Antigamente, quando se ignorava tudo sobre os
vírus, uma receita comum que as pessoas usavam
para se proteger do risco de contrair as doenças provocadas por eles era rezar. Está valendo.
Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/colunas/sergiorodrigues/2020/03/o-virus-da-linguagem.shtml>.
Acesso em 12 mar. 2020