Atenção: Para responder à questão, considere o texto abaixo.
1. Vem uma pessoa de Cachoeiro de Itapemirim e me dá notícias melancólicas. Numa viagem pelo interior, em estradas
antigamente belas, achou tudo feio e triste. A estupidez e a cobiça dos homens continua a devastar e exaurir a terra.
2. Mas não são apenas notícias tristes que me chegam da terra. Ouço nomes de velhos amigos e fico sabendo de histórias
novas. E a pessoa me fala da praia – de Marataíses – e diz que ainda continua reservado para mim aquele pedaço de terra, em cima
das pedras, entre duas prainhas...
3. Ali, um dia, o velho Braga, juntando os tostões que puder ganhar batendo em sua máquina, levantará a sua casa perante o
mar da infância. Ali plantará árvores e armará sua rede e meditará talvez com tédio e melancolia na vida que passou. Esse dia talvez
ainda esteja muito longe, e talvez não exista. Mas é doce pensar que o nordeste está lá, jogando as ondas bravas e fiéis contra as
pedras de antigamente; que milhões de vezes a espumarada recua e ferve, escachoando, e outra onda se ergue para arremeter
contra o pequeno território em que o velho Braga construiu sua casa de sonho e de paz. Como será a casa? Ah, amigos arquitetos,
vocês me façam uma coisa tão simples e tão natural que, entrando na casa, morando na casa, a gente nunca tenha a impressão de
que antes de fazê-la foi preciso traçar um plano; e que a ninguém sequer ocorra que ela foi construída, mas existe naturalmente,
desde sempre e para sempre, tranquila, boa e simples.
4. Que árvores plantarei? A terra certamente é ruim, além de pequena, e eu talvez não possa ter uma fruta-pão nem um jenipapeiro; talvez mangueiras e coqueiros para dar sombra e música; talvez... Mas nem sequer o pedaço de terra ainda é meu; meus títulos
de propriedade são apenas esses devaneios que oscilam entre a infância e a velhice, que me levam para longe das inquietações de
hoje.
5. Que rei sou eu, Braga Sem Terra, Rubem Coração de Leão de Circo, triste circo desorganizado e pobre em que o palhaço
cuida do elefante e o trapezista vai pescar nas noites sem lua com a rede de proteção, e a luz das estrelas e a água da chuva
atravessam o pano encardido e roto...
6. Mas me sinto subitamente sólido; há alguns metros, nestes 8 mil quilômetros de costa, onde posso plantar minha casa nos
dias de aflição e de cansaço, com pedras de ar e telhas de brisa; e os coqueiros farfalham, um sabiá canta meio longe, e me afundo
na rede, e posso dormir para sempre ao embalo do mar...
(Adaptado de: BRAGA, Rubem. Vem uma pessoa. 1949)