Depois de caminhar por alguns metros, Edgar
Wilson percebe ao longe a carcaça de um animal.
Segue pela estrada de terra batida, que fica deserta
a maior parte do tempo e é usada como atalho
pelos motoristas que conhecem bem as
imediações. Edgard fora atraído para esse trecho
por causa de uma revoada de abutres. Assim como
a podridão os atrai, os que se alimentam dela
atraem Edgard. Tanto as aves carniceiras quanto
ele se valem dos próprios sentidos para encontrar
os mortos, e ambas as espécies sobrevivem
desses restos não reclamados.
Todo nascimento é também um pouco de
morte. Edgar já viu algumas criaturas nascerem
mortas, outras, morrerem horas depois. Sua
consciência sobre o fim de todas as coisas tornou-se aguçada desde que abatia o gado e
principalmente agora, ao recolher todas as
espécies em qualquer parte. Assim como não teme
o pôr do sol, Edgar Wilson entende que não deve
temer a morte. Ambos ocorrem involuntariamente
num fluxo contínuo. De certa forma, o inevitável lhe
agrada. Sentir-se passível de morrer fortalece suas
decisões. Não importa o que faça, seja o bem, seja
o mal, ele deixará de existir.
Distrai-se dos voos dos abutres e caminha mais
alguns metros em outra direção, para a caveira de
uma vaca atirada no meio da estrada. Nota que não
foi atropelada. Os ossos estão intactos, nenhum
sinal de fratura. O couro foi levemente oxidado,
consumido pela exposição climática. Não há sinal
de vermes necrófagos ou pequenos insetos a
devorá-la. Edgar Wilson inclina ainda mais o corpo
ao perceber uma colmeia presa às costelas da
vaca. Apanha um galho de árvore caído no chão e
cutuca a colmeia, mesmo sabendo que é perigoso.
Nada acontece. Cutuca-a com mais força e a
colmeia se parte. Não há abelhas. Percebe algo
pastoso e brilhante. Leva a mão até a colmeia e
arranca um favo de mel. Cheira-o. Toca a ponta da
língua. Diferente do que imaginou, não está podre.
Come um pouco do mel. Agradam-lhe as pequenas
explosões do favo rompendo em sua boca,
algumas lascas muito finas que se prendem entre
os molares superiores. Lambe o excesso de mel
nos dedos e os limpa no macacão.
(MAIA, Ana Paula. Enterre seus mortos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2018, p. 71-72)