Os três vazios – Sobre como fomos esvaziados e lavados para fazer escoar a angústia consumista
Podemos caracterizar nossa época a partir de (três) grandes vazios:
1 – O primeiro deles é o vazio do pensamento, tal como o denominou Hannah Arendt. A característica desse vazio é
a ausência de reflexão, em palavras simples, de questionamento. Como é impossível viver sem pensamento, o uso de
ideias prontas se torna a cada dia mais necessário e vemos ideias se transformarem em mercadorias para facilitar a
circulação. Não são apenas as ideias que viram mercadorias. As mercadorias também vêm substituir ideias. Elas se
“consubstanciam” em ideias e fazem a sua vez. O império do design de nosso tempo tem a ver com isso. Cada vez mais
gostamos de coisas nas quais se guarda uma ideia. Hoje em dia vende-se autenticidade e prosperidade como um dia se
vendeu felicidade, liberdade e imortalidade. A ideia é melhor vendida por meio de conceitos que podemos possuir ou,
pelo menos, queremos possuir. O design garante isso. O que antigamente se chamava de “arte pela arte”, agora se
chama de “estética pela estética”.
Com isso quero dizer que o mundo da aparência substituiu o da essência e isso atingiu até mesmo o pensamento. A
inteligência se tornou algo da ordem da aparência, uma moda. Por isso mesmo, a ignorância populista também faz
muito sucesso. Enquanto uns vendem aparência de inteligência, outros vendem aparência de ignorância. Se há
realmente inteligência ou ignorância, não é bem a questão. Ganham os que sabem administrar essas aparências para a
mistificação das massas. A indústria cultural também é do design. E o design também é da inteligência e da ignorância.
2 – O segundo vazio parece ainda mais profundo, até porque, tradicionalmente tem relação com o território do que
chamamos de sensibilidade que está revestido de mistérios. Nesse campo, entra em jogo o vazio da emoção. A
impressão de que vivemos em uma sociedade anestesiada, na qual as pessoas são incapazes de sentir emoções, não é
nova. Alguns já falaram em culto da emoção, em sociedade excitada, em sociedade fissurada. Buscamos de modo
ensandecido uma emoção qualquer. Pagamos caro. Da alegria à tristeza, queremos que a religião, o sexo, a alimentação,
os filmes, as drogas, os esportes radicais, tudo nos provoque algum tipo de êxtase. A emoção virou mercadoria e o que
não emociona não vale a pena. Alegrias suaves e tristezas leves não interessam. Tudo tem que ser extasiante. As
mercadorias aparecem com a promessa de garantir esse êxtase. Das roupas de marca ao turismo, tudo tem que ser
intenso, cinematográfico, transcendental, radical, impressionante. É o império da emoção contra a chateação, da
excitação contra o tédio, da rapidez contra a calma, da festa contra a tranquilidade. A questão que está em jogo é a do
esvaziamento afetivo. Se usarmos um clichê, diremos que nos tornamos cada vez mais frios, cada vez mais robotizados.
Há uma verdade nisso: quer dizer que perdemos nosso calor humano, nosso calor animal, o que nos confirma como
seres vivos. Ficamos cada vez mais vitimados pelo universo da plasticidade. O império do design se instaura aí. Da
plasticidade exterior ao plástico (que consumimos fisiologicamente no uso de uma garrafa de água), não há muita
diferença. [...]
(TIBURI, Márcia. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2016/08/os-tres-vazios-sobre-como-fomos-esvaziados-e-lavados-parafazer-escoar-a-angustia-consumista/. Adaptado.)