Tatuapé. O caminho do Tatu
Daniel Munduruku
07 de agosto de 2023
Uma das mais intrigantes invenções humanas é o metrô.
Não digo que seja intrigante para o homem comum,
acostumado com os avanços tecnológicos. Penso no homem
da floresta, acostumado com o silêncio da mata, com o canto
dos pássaros ou com a paciência constante do rio que segue
seu fluxo rumo ao mar. Penso nos povos da floresta.
Os índios sempre ficam encantados com a agilidade do
grande tatu metálico. Lembro de mim mesmo quando cheguei
a São Paulo. Ficava muito tempo atrás desse tatu, apenas para
observar o caminho que ele fazia.
O tatu da floresta tem uma característica muito
interessante: ele corre para sua toca quando se vê acuado
pelos seus predadores. É uma forma de escapar ao ataque
deles. Mas isso é o instinto de sobrevivência. Quem vive na
floresta sabe, bem lá dentro de si, que não pode se permitir
andar desatento, pois corre um sério perigo de não ter
amanhã.
O tatu metálico da cidade não tem esse medo. É ele que faz
o seu caminho, mostra a direção, rasga os trilhos como quem
desbrava. É ele que segue levando pessoas para os seus
destinos. Alguns sofrem com a sua chegada, outros sofrem
com a sua partida.
Voltei a pensar no tatu da floresta, que desconhece o
próprio destino mas sabe aonde quer chegar.
Pensei também no tempo de antigamente, quando o
Tatuapé era um lugar de caça ao tatu. Índios caçadores
entravam em sua mata apenas para saber onde estavam as
pegadas do animal. Depois eles ficavam à espreita daquele
parente, aguardando pacientemente sua manifestação. Nessa
hora — quando o tatu saía da toca — eles o pegavam e faziam
um suculento assado que iria alimentar os famintos caçadores.
Voltei a pensar no tatu da cidade, que não pode servir de
alimento, mas é usado como transporte, para a maioria das
pessoas poder encontrar o seu próprio alimento. Andando no
metrô que seguia rumo ao Tatuapé, fiquei mirando os prédios
que ele cortava como se fossem árvores gigantes de concreto.
Naquele itinerário eu ia buscando algum resquício das antigas
civilizações que habitaram aquele vale. Encontrei apenas
urubus que sobrevoavam o trem que, por sua vez, cortava o
coração da Mãe Terra como uma lâmina afiada. Vi pombos e
pombas voando livremente entre as estações. Vi um gavião
que voava indiferente por entre os prédios. Não vi nenhum
tatu e isso me fez sentir saudades de um tempo em que a
natureza imperava nesse pedaço de São Paulo habitado por
índios Puris. Senti saudades de um ontem impossível de se
tornar hoje novamente.
Pensando nisso deixei o trem me levar entre Itaquera e o
Anhangabaú. Precisava levar minha alma ao princípio de tudo.
In: Crônicas de São Paulo: um olhar indígena. Callis Editora, 2ª
edição, 2010, pp,15-17.