Texto 2:
Entrevista
Virgílio Almeida: Pensador do mundo digital
Cientista da computação alerta para o risco de a internet e suas ferramentas digitais
aumentarem a discriminação e a desigualdade social.
Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP
Edição 319
set. 2022
Ao longo deste ano e até abril do próximo, o engenheiro e cientista da computação Virgílio Augusto Fernandes Almeida vai
examinar, como pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), as vantagens e as
desvantagens da interação entre as pessoas e os algoritmos, que captam e filtram informações da internet, selecionam notícias,
recomendam filmes, decidem sobre a qualidade do tratamento médico para cada paciente, enfim, influenciam e, por vezes, moldam a
ação humana e a organização social (ver Pesquisa FAPESPno 266).
Professor emérito do Departamento de Ciência da Computação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e
professor associado do Centro Berkman Klein para Internet e Sociedade, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, ele tem
olhado há anos com desconfiança para os algoritmos – mais recentemente, com colegas da ciência política.
Como secretário de Política de Informática do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), cargo que ocupou
entre 2011 e 2016, e coordenador do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI), esse mineiro de Belo Horizonte participou da
elaboração das regras que organizaram o mundo digital no país e acompanhou a gestação do Marco Civil da Internet, aprovado em
2014.
[...]
Já há princípios nessa nova ordem digital?
Alguns países estão formulando regras. A União Europeia criou uma legislação, a Digital Service Act, que ainda não entrou
em vigor. A Alemanha definiu o que é conteúdo ilegal on-line; o país já tinha uma regulação voltada ao off-line, por causa do nazismo.
Um fundamento na Europa é: os direitos e as responsabilidades off-line têm de permanecer no on-line. No Brasil, o PL 2.630 [Projeto
de Lei nº 2.630/20, que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet] estabelece esses limites,
mas parou no Congresso. O que tenho visto é que as crises que fazem as coisas andarem. O Marco Civil da Internet saiu depois que o
Edward Snowden vazou informações de segurança dos Estados Unidos em 2013 e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais depois do
caso da Cambridge Analítica [empresa britânica que em 2014 recolheu informações de até 87 milhões de usuários do Facebook e as
utilizou para influenciar a opinião de eleitores em vários países]. As regras também têm de ter uma dosagem porque, se você define
certos conteúdos como ilegais, pode ser que as empresas de tecnologia, com receio de multas ou de penalidades, se antecipem,
comecem a barrá-los e passem a exercer censura política ou econômica.
Para governar o espaço digital, temos de reunir todos os participantes, governo, empresas e sociedade civil
[...]
O que é a neutralidade de rede?
As comunicações na internet utilizam protocolos chamados TCP/IP [protocolo de controle de transmissão/protocolo da
internet]. Os conteúdos são quebrados em pequenos pacotes e transitam pela rede. Têm origem e destino. A neutralidade de rede
implica que as empresas por onde passam os pacotes não podem tratar diferentemente os pacotes em razão da origem ou do destino.
Elas têm que ser neutras, não podem interferir. Na época isso era importante porque estabelecia que uma empresa de telecomunicação
não poderia bloquear o Skype, por exemplo, mesmo se concorresse com o serviço dela de voz. Outra preocupação é que essas empresas
não poderiam dar um tratamento especial a um determinado serviço ou outro.
Quero identificar formas de colaboração que preservem a individualidade e não deixem o algoritmo fazer tudo
As empresas aceitaram a neutralidade?
Foi uma negociação difícil, mas o Marco Civil da Internet dava uma garantia às empresas, porque gerou um ambiente estável
e seguro. Estava na lei que qualquer conteúdo só poderia ser removido com uma ordem judicial. Se não fosse o marco civil, a confusão
na eleição de 2018 poderia ser ainda maior, porque um político poderia querer tirar da internet um conteúdo que o desagradasse. O
Brasil foi um dos pioneiros na neutralidade de rede e na organização multissetorial da internet. Tínhamos um prestígio imenso. À
NETmundial, compareceram 1.100 pessoas, de mais de 100 países, ministros de Estado e 100 jornalistas internacionais. Os debates
eram ao vivo e havia 30 hubs internacionais. Os grupos discutiam os temas sempre em salas separadas e a tela onde se faziam as
alterações de textos era projetada para todo mundo ver o que estava sendo operado. Nas reuniões formais, tinha um palco grande com
quatro microfones: um para representantes dos governos, um para o setor privado, um para a sociedade civil e outro para a comunidade
técnica e acadêmica. Se alguém de um governo falava, o próximo não poderia ser de outro governo, teria de esperar os representantes
dos outros três setores.
Fonte: https://revistapesquisa.fapesp.br.