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de 21 a 28.
Fazer
80
E assim,
aconteceu que esta semana eu fizesse
80 anos!
Nunca imaginei
chegar tão longe. Filha de uma
mãe que morreu aos 40, considerava-me
destinada
a curto percurso. E a vida não parecia ter
por mim
grande apreço; tentou me matar de pneumonia
aos
seis anos, dardejou-me uma meningite aos
oito, castigou-
me com inúmeras pneumonias ao longo de todo
o percurso e, já no terceiro ato, coroou o
conjunto
com uma tuberculose. Mas, como se disputasse
uma
maratona, cheguei aos 80 esbaforida somente
pelo
trabalho.
80 anos são
uma tremenda esquina da vida.
Com certeza chegamos a ela mais
frágeis,
porque
a possibilidade de morte, que sempre foi a
mesma,
mas que antes parecia eventual, ganha uma
certa
concretude.
E, ao mesmo
tempo, chegamos mais fortes porque
a maior parte do caminho foi percorrida, as
inseguranças
da juventude ficaram para trás, alguma
tantas perguntas já foram respondidas, e o
que havia
a fazer já foi feito.
Certas coisas mudam, porém, aos
80.
Não terei mais cão,
porque um cão
correria o
risco
de viver mais do que eu, e não quero
prometer
proteção e amor a alguém para de repente
descumprir
a promessa. Não faço mais projetos a longo
prazo;
vou até alguns meses à frente, aos
compromissos
já marcados, embora sabendo que para o ano
que
vem marcarei outros. Não vou mais imaginar-
me
mergulhada em estudos de alemão, como sempre
fiz, e muito menos de mandarim, como minha
curiosidade
me ordenaria. No capítulo viagens, dou uma
fechadinha no leque; não conhecerei o
Himalaia, não
enfrentarei falta de hotel ou de banheiro,
não caminharei
tardes inteiras atendendo minha ânsia
turística.
E até nos museus, minha sempre paixão, terei
que
ser menos gulosa.
Fecho
o leque da realidade, mas tenho outro para
abrir. As minhas viagens, tantas, estão
anotadas em
cadernos e cadernetas. Ali estão datas,
descrições e
até desenhos ou rabiscos retendo aquilo que
ameaçava
diluir. Agora, me basta abrir qualquer um
deles
para retomar a estrada.
Isso, quanto às viagens facultativas e
aventurosas.
As outras, de trabalho, continuam na ordem
do
dia, levando-me a arrastar minha malinha de
rodas
pelos aeroportos da vida.
Aos 80, considero todo dia como um
presente
dos deuses,
embora até
hoje não saiba quem são eles. E
toda noite agradeço com gratidão, mesmo com
a indecisão
do endereço.
Até essa
esquina olha-se para a frente. Chegando
a ela, o retrovisor se impõe.
Olho para trás e o que vejo me agrada.
Vivi
com
abundância, a palavra melhor é essa.
Abundância biográfica
de países, de línguas e culturas. Abundância
de situações, as favoráveis e as adversas.
Abundância
de encontros com pessoas preciosas, com
criaturas
admiráveis, e alguns poucos canalhas, úteis
como referência.
Trabalhei em muitas coisas diferentes e de
todas gostei, porque de cada uma fiz um
degrau de
aprendizado que me permitiu desempenhar a
próxima.
Li quase todos os dias da minha vida, fosse
pouco
ou muito, enchendo a mochila de dados que eu
embaralharia,
de nomes que se iriam no vento, mas
conservando
as emoções que os livros me davam. Não
escrevi tanto quanto li, nem teria sido
possível. Mas
o que escrevi está de acordo comigo e me
representa
mais generosamente que uma
selfie.
Considero estar pronta
para o embarque.
Mas
enquanto meu voo não é anunciado, vou
estruturando
— como faço com frequência em aeroportos —
ideias e frases de um próximo livro.
COLASANTI, Marina. Disponível em: <
https://www.marinacolasanti.
com/2017/09/cronica-de-quinta-fazer-80.html?
fb_action_ids=
1437566189697967&fb_action_types=og.comm
ents
>. Acesso em:
25
fev. 2018.