Texto V
O Cearensês no Universo Multilinguístico do Português: Cine Holliúdy
Com o tempo, as divisões geográficas e políticas de um país podem mudar bastante. Uma das
regiões mais importantes do Brasil, há alguns séculos, era a capitania de Pernambuco, que tinha um
enorme poder político sobre outras regiões do nordeste. Após 119 anos de influência pernambucana, a
então capitania do Siará se tornou independente, graças à decisão da Rainha Maria I no dia 17 de janeiro
de 1799. Para comemorar a data, uma lei estadual declarou, em 2004, o “Dia do Ceará”. A língua, assim
como as relações políticas regionais, também mudam. Mudam no tempo e mudam no espaço. (...)
Se você já assistiu ao filme “Cine Holliúdy” (2012), deve se lembrar do recado inicial: “Vocês vão
assistir ao primeiro filme nacional falado em ‘Cearensês’, por isso, as legendas”. Além disso, também é
dito logo no início que “Este filme contém cenas de cearensidade explícita”. Estes avisos podem ser
compreendidos como uma simulação das fichas de verificação de conteúdos artísticos, apresentando
avisos ao público.
Se você ainda não conhece, “Cine Holliúdy” é um filme brasileiro, dirigido por Halder Gomes,
inspirado no curta-metragem “Cine Holiúdy: O Astista Contra o Caba do Mal”, de 2004 que, por sua vez,
também teve uma parte 2, intitulada “Cine Holliúdy 2: A Chibata Sideral”, lançada em 2017. Essa
“franquia” inspirou a criação da série homônima produzida e exibida pela TV Globo desde 2019 e que
lançou sua segunda temporada em 2022. Ele conta a história de Francisgleydisson, pai de família que
decide migrar para uma outra cidade e abrir um cinema. Toda a história se passa na década de 1970 no
interior do Ceará, quando a TV ainda começava a se popularizar e a ameaçar os cinemas das pequenas
cidades. Com muito humor e muito “cearensês”, Francisgleydisson luta para manter o seu cinema, bem
como para despertar e manter a paixão das pessoas pelas exibições cinematográficas.
Mas o que nos interessa mesmo nesse post é esse tal de “cearensês”! O que seria isso? Para
podermos compreender, vamos precisar falar um pouquinho de sociolinguística. As pesquisas científicas
sobre a linguagem, a depender de seus objetivos, podem adotar como foco o estudo das características
que permitem que a sociedade influencie a forma como uma língua se apresenta. Uma das vertentes
mais conhecidas da sociolinguística é a variacionista, que estabeleceu termos bastante conhecidos e difundidos hoje, até mesmo fora da área acadêmica. Dentre esses termos, podemos mencionar as
variações linguísticas e as variedades linguísticas (grosso modo, os sotaques). Além disso, existem
diversos “bordões” da área, fatos que estão bastante estabelecidos e são repetidos com bastante
frequência como aquela que usamos no início do post, de que as línguas variam no tempo (com o passar
dos anos) e no espaço (regiões mais afastadas tendem usar a língua de maneiras mais distantes uma da
outra).
A título de exemplo, os sotaques nordestinos têm cada um as suas particularidades. Ainda assim,
por serem geograficamente próximos, eles também são mais parecidos entre eles do que se
compararmos com algum sotaque sudestino ou sulista. Mas mesmo dentro de uma certa região, pessoas
mais velhas terão a tendência a falar diferente dos jovens por terem tido influência de sotaques mais
antigos e estarem em menos contato com as inovações da juventude.
Se olharmos ao extremo, o contato que tivemos com pessoas ao longo da nossa vida já influencia
nossa forma de falar e, nesse sentido, cada pessoa tem seu próprio jeito de falar (o que chamamos de
idioleto). Cada uma dessas formas de falar é caracterizada por certas especificidades de diferentes
naturezas. Por exemplo, podemos mudar as palavras que se referem a coisas específicas como aipim,
mandioca e macaxeira, ou como tangerina, mexerica e bergamota (...)
Independente da forma como falamos, ainda assim somos todos brasileiros e nos entendemos. E
sendo brasileiros e estando frequentemente em contato com todos esses sotaques, também costumamos
reconhecer ao menos aqueles mais conhecidos. Desse modo, a forma de alguém falar nos dá uma pista
linguística para inferirmos parte da identidade do outro. (...)
SAMPAIO, Thiago Oliveira da Motta. O Cearensês no Universo Multilinguístico do Português: Cine Holliúdy. Blog da Unicamp,
Campinas, 17 jan. 2023. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/linguistica/2023/01/17/o-universo-multilinguistico-doportugues/. Acesso em: 26 jun. 2023. (Adaptado)