COMIDAS DO FIM DO MUNDO
Os kits de alimentos para bunkers apresentados pela
indústria como soluções para o caos se baseiam no
medo, mas em um suposto planeta pós-apocalípti
Para um planeta retratado em filmes e discursos
fanáticos como à beira do caos, destruído por extremos
climáticos, pandemias e guerras, os kits de comidas para
o pós-apocalipse andam florescendo entre
consumidores, principalmente dos EUA. Não apenas
alimentos muitas vezes ultraprocessados — o oposto
dos frescos e saudáveis — mas também latas e vidros
para conservas e até construção de bunkers em casas
fazem parte dos negócios. Ofertas desses kits para o fim
do mundo se espalham em sites, muitos deles ligados a
extremistas, com cardápios e preços variados, por ordem
de validade para armazenamento, e que vão de
manteiga de amendoim a atum enlatado, de feijões a
leite em pó. A Technavio, agência de análise de
mercados, prevê aumento de US$ 3,20 bilhões nesse
setor até 2028, com potencial de retorno calculado em
7,35%. A questão é: além dos investidores que apostam
no medo do caos, os consumidores desses kits têm
algum ganho no mundo real?
A resposta é negativa para a nutricionista Karine Durães,
especialista em comportamento alimentar, e para o
psiquiatra Filipe Doutel. As saídas para um suposto
planeta pós-apocalíptico não estariam no individualismo,
e sim no compartilhamento. Ninguém, ou nenhuma
família, sobreviveria apenas com a própria comida em
meio a cidades em ruínas se não houvesse um trabalho
de reconstrução com a cooperação de todos.
"Na verdade, já estamos destruindo o planeta, por
escolhas do dia a dia. Não acredito em estocar alimentos
e se manter distante da realidade da fome: quem não
come nem hoje, não tem tempo de guardar comida", diz
Karine, lembrando que "esperar o pior tira a pessoa do
presente; ela se prepara para o abstrato, deixando de
lado o agora". Essas neuroses inclusive induzem à
ansiedade e à compulsão por comer, como explica a
nutricionista. Para ela, ao contrário do individualismo,
alimentação tem a ver com troca, inclusive no preparo.
"E ninguém sobrevive só de comida em um bunker.
Precisa de gente ao redor."
Filipe observa que já vivemos em condições ambientais
mais extremadas e pandemias mais frequentes. "Não é
ficção científica, é realidade. E se fechar, estocando
comida em um bunker, não serve de nada", afirma. Essa
sensação de Apocalipse, segundo o psiquiatra, é
alimentada pelo medo e pelo ódio, sentimentos
primitivos, instintivos, ao contrário de amor e tristeza, que
são mais elaborados. "É preciso sair dessas estruturas
toscas, preto ou branco, comprando armas ou 'se
armando' de comida", assinala. "Para dificuldades coletivas, as soluções têm de ser coletivas."
(ISTOÉ,abril2024)