O homem que devia entregar a carta
Era sua primeira missão como office-boy. Estava com dezoito anos, mas não tinha conseguido nenhum outro emprego.
Apesar dos jornais garantirem que não havia crise, ele simplesmente batera o nariz em dezenas de portas e tinha enfrentado
filas até dois quilômetros. O patrão pediu que ele entregasse uma carta, com protocolo. E avisou: a pessoa que receber precisa
assinar este papelzinho. Só entregue mesmo ao destinatário, a ninguém mais, esta carta é da maior importância.
Foi. Ao chegar, verificou o endereço: era de um terreno baldio. Comparou, indagou. Não havia engano mesmo. O número
correspondia ao terreno. Voltou ao patrão, contou.
E o patrão: – Eu sei que é um terreno. Mas vão construir um prédio ali.
– Vão? E o que faço?
– Você entrega a carta, como mandei.
O patrão era um homem ocupado, dispensou o boy. Ele voltou ao local. Nada. Um terreno sujo, cheio de mato. O que
fazer? Sentou-se, pensando que se alguém chegasse por ali, poderia dar uma informação. No fim do dia, foi embora.
Na manhã seguinte, ao subir no elevador, encontrou o patrão.
– Como é, entregou a carta?
– Não tem prédio nenhum lá.
– Mas vão construir. Já conseguiram até financiamento da Caixa Econômica.
O boy voltou ao terreno. Naquele e nos dias seguintes. Nas semanas e meses. E o patrão, já inquieto, querendo saber da
carta, o boy mais inquieto ainda, já sem saber por que não construíam logo o tal edifício. Um dia, viu homens carpindo o mato.
No outro dia, ergueram um tapume. Em seguida, instalaram placas. Logo vieram tratores e máquinas. Cavaram, cavaram,
caminhões basculantes levaram a terra, chegou cimento, aço, pedras. As fundações ficaram prontas.
E o boy ali, todos os dias, firme, à espera. Fazendo amizade com os operários, capatazes da obra, aprendendo como se
mistura o cimento, como se processa a concretagem, acompanhando os andares que subiam, as lajes sendo terminadas.
O prédio subiu. A esta altura, o patrão, irritadíssimo com o boy, ameaçava despedi-lo.
– Que porcaria você é que nem consegue entregar uma carta?
O boy, ferido no orgulho, plantou-se então, dia e noite, sentado num dos andaimes. Amigo de todos os operários, comia
e bebia com eles, contava casos, ouvia histórias do Nordeste, lendas da Bahia, conhecia a miséria que ia pelo interior, os dramas
de fome e doença, o abandono, a seca. A parte mais demorada, lenta. Colocar portas, janelas, armários, rebocar, passar massa
corrida, pintar, instalar pias, torneiras, vasos, tacos. Então, a festa de inauguração, chope. E as faixas, os corretores ansiosos
por enganar alguém com as compras maravilhosas que terminavam em pesadelo.
As pessoas começaram a se mudar. Todos os dias, o boy batia à porta do apartamento 114. O destinatário ainda não tinha
se mudado. Agora, o boy já tinha feito vinte anos e o patrão tinha lhe dado um prazo fixo, fatal, irreversível. Ou entregava a
carta, ou era despedido.
Ele batia à porta, ninguém atendia. Até que um caminhão trouxe mudanças para o 114. Mas a porta continuava fechada,
muda.
Batia, e nada.
Uma tarde, abriram. Um senhor grisalho, ar sonolento. O boy, triunfante, estendeu a carta. O homem olhou o destinatário.
– Não sou eu. Nem sei quem é.
– Como? O senhor comprou o apartamento de alguém?
– Não. Comprei na planta. Não teve nenhum dono antes de mim.
– Que faço?
– Passa na portaria, fala com o zelador.
O boy passou, explicou a situação. O zelador apanhou um carimbo, bateu no envelope: destinatário desconhecido.
E devolveu a carta ao boy.
(Ignácio de Loyola Brandão. In: Cadeiras Proibidas.)