O FUTURO DA GENÉTICA
O debate social sobre o sentido e o valor da engenharia
genética segue um padrão facilmente apreensível. Os
críticos usualmente recorrem a formulações éticas de
nosso passado cultural para recomendar interdições e/ou
cuidados. Uma fórmula é a hybris. Assim como os gregos
propunham que haveria castigo divino para os humanos
orgulhosos que queriam e podiam muito, que procuravam
assemelhar-se aos deuses, algumas críticas da engenharia
genética prescrevem a não-violação da ordem da natureza
e alertam para a nossa extinção se continuarmos a cometer
excessos. Esse gênero de crítica está em concordância
com o conto milenar do aprendiz de feiticeiro, incapaz
de controlar suas experiências. Uma outra aproximação
crítica é feita entre o horror da eugenia moderna, que
culmina no nazismo, e a tendência, apresentada em livros
e filmes, para a fabricação do homem perfeito.
Os defensores da engenharia genética tampouco
são inovadores. Ora reiteram que o conhecimento está
acima de tudo, ora que implicará em diversos progressos
terapêuticos. No anúncio de resultados preliminares,
políticos e médicos frisaram que o mapeamento do
genoma humano seria o maior feito da humanidade e que
erradicaria, num futuro próximo, uma série de doenças.
O modo de desdobramento do debate está marcado
por uma ausência decisiva: a singularidade desse modo
de conhecimento. O genoma não é a descrição de um
produto acabado; parece-se com um programa, com
uma receita para construir, processo que é afetado
pelas circunstâncias de desenvolvimento dos indivíduos.
Quando se diz que um gene é para alguma coisa, o que se
descobre usualmente é que a presença de uma diferença
na sequência genética determina ou favorece a aparição
de alguma doença ou desvio. Por fim, raros são os casos
em que um erro de sequência determina singularmente
o advento de uma doença. Como associam as diferenças
de sequência a estatísticas sobre a aparição de doenças
em uma população, a grande maioria dos diagnósticos
genéticos é e será probabilística e multicausal. A medicina
descobrirá propensões acrescidas de contrair certas
doenças associadas a sequências genéticas singulares,
propensões que se concretizam ou não, dependendo dos
hábitos de vida.
O que estamos experimentando é uma transformação
tecnológica do estatuto do corpo. De início, trata-se de
uma transformação ontológica: o corpo e todos os seres
vivos tornam-se informação codificada. A quebra do código
é o que permite a manipulação do modo de ser de todos
os seres vivos. A vida como programa implica um corpo
transformável, mas não só pela intervenção tecnológica.
O corpo torna-se, ao mesmo tempo, um conjunto de
possibilidades cuja atualização depende dos cuidados que
o indivíduo estabelece consigo mesmo. […]
Atentar a esta relação entre corpo e futuro permite recolocar
o debate sobre o sentido e valor da engenharia genética.
Precisa-se questioná-la no lugar mesmo em que nossa adesão
é mais facilmente conquistada: a saúde. O conhecimento do
genoma humano, mais do que permitir avanços na saúde,
transforma a relação que estabelecemos com nosso corpo
e com nosso futuro. Transforma, pois, o modo com que os
indivíduos se propõem a cuidar de si mesmos.
VAZ, Paulo. “O futuro da genética” In: Nas fronteiras do contemporâneo:
território, identidade, arte, moda, corpo e mídia. Org.: Nízia Villaça, Fred
Góes. Rio de Janeiro: Mauad: FUJB, 2001