Saudade
Conversávamos sobre saudade. E de repente me apercebi de que não tenho saudade de nada. Nem da infância querida,
nem sequer das borboletas azuis, Casimiro. Nem mesmo de quem morreu. De quem morreu sinto é falta, o prejuízo da perda,
a ausência. A vontade da presença, mas não no passado, e sim presença atual. Saudade será isso? Queria tê-los aqui, agora.
Voltar atrás? Acho que não, nem com eles.
A vida é uma coisa que tem de passar, uma obrigação de que é preciso dar conta. Uma dívida que se vai pagando todos os
meses, todos os dias. Parece loucura lamentar o tempo em que se devia muito mais.
Gostaria de ter palavras boas, eficientes, para explicar como é isso de não ter saudades; fazer sentir que estou exprimindo
um sentimento real, a humilde, a nua verdade. Você insinua a suspeita de que talvez seja isso uma atitude. Pois então eu lhe
digo que essa capacidade de morrer de saudades, creio que ela só afeta a quem não cresceu direito; feito uma cobra que se
sentisse melhor na pele antiga, não se acomodasse nunca à pele nova.
Fala que saudade é sensação de perda. Pois é. E eu lhe digo que, pessoalmente, não sinto que perdi nada. Gastei, gastei
tempo, emoções, corpo e alma. E gastar não é perder, é usar até consumir.
E não pense que estou a lhe sugerir tragédias. Tirando a média, não tive quinhão por demais pior que o dos outros. Houve
muito pedaço duro, mas a vida é assim mesmo, a uns traz os seus golpes mais cedo e a outros mais tarde; no fim, iguala a todos.
Infância sem lágrimas, amada, protegida. Mocidade – mas a mocidade já é de si uma etapa infeliz. Coração inquieto que
não sabe o que quer, ou quer demais. Qual será, nesta vida, o jovem satisfeito? Um jovem pode nos fazer confidências de
exaltação, de embriaguez; de felicidade, nunca. Mocidade é a quadra dramática por excelência, o período dos conflitos, dos
ajustamentos penosos, dos desajustamentos trágicos. A idade dos suicídios, dos desenganos e, por isso mesmo, dos grandes
heroísmos. É o tempo em que a gente quer ser dono do mundo – e ao mesmo tempo sente que sobra nesse mesmo mundo. A
idade em que se descobre a solidão irremediável de todos os viventes.
Não sei mesmo como, entre as inúmeras mentiras do mundo, se consegue manter essa mentira maior de todas: a suposta
felicidade dos moços. Por mim, sempre tive pena deles, da sua angústia e do seu desamparo. Enquanto esta idade a que
chegamos, você e eu, é o tempo da estabilidade e das batalhas ganhas. Já pouco se exige, já pouco se espera. E mesmo quando
se exige muito, só se espera o possível. Se as surpresas são poucas, poucos também os desenganos. A gente vai se aferrando a
hábitos, a pessoas e objetos.
E depois há o capítulo da morte, sempre presente em todas as idades. Com a diferença de que a morte é a amante dos
moços e a companheira dos velhos. Para os jovens ela é abismo e paixão. Para nós, foi se tornando pouco a pouco uma velha
amiga, a se anunciar devagarinho: o cabelo branco, a preguiça, a ruga no rosto, a vista fraca, os achaques. Velha amiga que vem
de viagem e de cada porto nos manda um postal, para indicar que já embarcou.
(QUEIROZ, Rachel de. Um alpendre, uma rede, um açude. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. Adaptado.)