O grande mistério
Há dias já que buscavam uma explicação para os odores
esquisitos que vinham da sala de visitas. Primeiro houve um
erro de interpretação: o quase imperceptível cheiro foi tomado
como sendo de camarão. No dia em que as pessoas da casa
notaram que a sala fedia, havia um soufflé de camarão para o
jantar. Daí...
Mas comeu-se o camarão, que inclusive foi elogiado pelas
visitas, jogaram as sobras na lata do lixo e — coisa estranha —
no dia seguinte a sala cheirava pior.
Talvez alguém não gostasse de camarão e, por cerimônia, embora isso não se use, jogasse a sua porção debaixo da
mesa. Ventilada a hipótese, os empregados espiaram e encontraram apenas um pedaço de pão e uma boneca de perna
quebrada, que Giselinha esquecera ali. E como ambos os
achados eram inodoros, o mistério persistiu.
Os patrões chamaram a arrumadeira às falas. Que era
um absurdo, que não podia continuar, que isso, que aquilo.
Tachada de desleixada, a arrumadeira caprichou na limpeza.
Varreu tudo, espanou, esfregou e... nada. Vinte e quatro horas
depois, a coisa continuava. Se modificação houver, fora para
um cheiro mais ativo.
À noite, quando o dono da casa chegou, passou uma espinafração geral e, vítima da leitura dos jornais, que folheara na
lotação, chegou até a citar a Constituição na defesa de seus
interesses.
— Se eu pago empregadas para lavar, passar, limpar,
cozinhar, arrumar e ama-secar, tenho o direito de exigir alguma
coisa. Não pretendo que a sala de visitas seja um jasmineiro,
mas feder também não. Ou sai o cheiro ou saem os empregados.
Reunida na cozinha, a criadagem confabulava. Os debates eram apaixonados, mas num ponto todos concordavam:
ninguém tinha culpa. A sala estava um brinco; dava até gosto
ver. Mas ver, somente, porque o cheiro era de morte.
Então alguém propôs encerar. Quem sabe uma passada
de cera no assoalho não iria melhorar a situação?
— Isso mesmo — aprovou a maioria, satisfeita por ter
encontrado uma fórmula capaz de combater o mal que ameaçava seu salário.
Pela manhã, ainda ninguém se levantara, e já a copeira
e o chofer enceravam sofregamente, a quatro mãos. Quando
os patrões desceram para o café, o assoalho brilhava. O cheiro
da cera predominava, mas o misterioso odor, que há dias
intrigava a todos, persistia, a uma respirada mais forte.
Apenas uma questão de tempo. Com o passar das horas,
o cheiro da cera — como era normal — diminuía, enquanto
o outro, o misterioso — estranhamente, aumentava. Pouco
a pouco reinaria novamente, para desespero geral de empregados e empregadores.
A patroa, enfim, contrariando os seus hábitos, tomou
uma atitude: desceu do alto do seu grã-finismo com as armas
de que dispunha, e com tal espírito de sacrifício que resolveu
gastar os seus perfumes. Quando ela anunciou que derramaria perfume francês no tapete, a arrumadeira comentou com a
copeira:
— Madame apelou para a ignorância.
E salpicada que foi, a sala recendeu. A sorte estava lançada. Madame esbanjou suas essências com uma altivez digna
de uma rainha a caminho do cadafalso. Seria o prestígio e a
experiência de Carven, Patou, Fath, Schiaparelli, Balenciaga,
Piguet e outros menores, contra a ignóbil catinga.
Na hora do jantar a alegria era geral. Não restavam dúvidas de que o cheiro enjoativo daquele coquetel de perfumes era impróprio para uma sala de visitas, mas ninguém
poderia deixar de concordar que aquele era preferível ao
outro, finalmente vencido.
Mas eis que o patrão, a horas mortas, acordou com sede.
Levantou-se cauteloso, para não acordar ninguém, e desceu as
escadas, rumo à geladeira. Ia ainda a meio caminho quando
sentiu que o exército de perfumistas franceses fora derrotado.
O barulho que fez daria para acordar um quarteirão, quanto
mais os da casa, os pobres moradores daquela casa, despertados violentamente, e que precisavam perguntar nada para perceberem o que se passava. Bastou respirar.
Hoje pela manhã, finalmente, após buscas desesperadas,
uma das empregadas localizou o cheiro. Estava dentro de uma
jarra, uma bela jarra, orgulho da família, pois tratava-se de peça
raríssima, da dinastia Ming.
Apertada pelo interrogatório paterno Giselinha confessou-
-se culpada e, na inocência dos seus três anos, prometeu não
fazer mais.
Não fazer mais na jarra, é lógico.
(PONTE PRETA, Stanislaw. O grande mistério. In: Rosamundo e os
outros. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1963. P. 76.)