Texto 01
Notícia de jornal Leio no jornal a notícia de que
um homem morreu de fome. Um homem de cor
branca, trinta anos presumíveis, pobremente
vestido, morreu de fome, sem socorros, em pleno
centro da cidade, permanecendo deitado na
calçada durante setenta e duas horas, para
finalmente morrer de fome.
Morreu de fome. Depois de insistentes pedidos de
comerciantes, uma ambulância do Pronto Socorro
e uma radiopatrulha foram ao local, mas
regressaram sem prestar auxílio ao homem, que
acabou morrendo de fome.
Um homem que morreu de fome. O comissário de
plantão (um homem) afirmou que o caso (morrer
de fome) era da alçada da Delegacia de
Mendicância, especialista em homens que morrem
de fome. E o homem morreu de fome.
O corpo do homem que morreu de fome foi
recolhido ao Instituto Médico Legal sem ser
identificado. Nada se sabe dele, senão que morreu
de fome. Um homem morre de fome em plena rua,
entre centenas de passantes. Um homem caído na
rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo,
um anormal, um tarado, um pária, um marginal,
um proscrito, um bicho, uma coisa – não é
homem. E os outros homens cumprem seu destino
de passantes, que é o de passar. Durante setenta e
duas horas todos passam, ao lado do homem que
morre de fome, com um olhar de nojo, desdém,
inquietação e até mesmo piedade, ou sem olhar
nenhum, e o homem continua morrendo de fome,
sozinho, isolado, perdido entre os homens, sem
socorro e sem perdão.
Não é da alçada do comissário, nem do hospital, nem da radiopatrulha, por que haveria de ser da
minha alçada? Que é que eu tenho com isso?
Deixa o homem morrer de fome.
E o homem morre de fome. De trinta anos
presumíveis. Pobremente vestido. Morreu de
fome, diz o jornal. Louve-se a insistência dos
comerciantes, que jamais morrerão de fome,
pedindo providências às autoridades. As
autoridades nada mais puderam fazer senão
remover o corpo do homem. Deviam deixar que
apodrecesse, para escarmento dos outros homens.
Nada mais puderam fazer senão esperar que
morresse de fome.
E ontem, depois de setenta e duas horas de
inanição em plena rua, no centro mais
movimentado da cidade do Rio de Janeiro, um
homem morreu de fome.
Morreu de fome.
Fernando Sabino