O jargão
Nenhuma figura é tão fascinante quanto o Falso Entendido. É o cara que não sabe nada de nada, mas sabe o jargão.
E passa por autoridade no assunto. Um refinamento ainda maior da espécie é o tipo que não sabe nem o jargão. Mas
inventa.
– Ó Matias, você entende de mercado de capitais…
– Nem tanto, nem tanto…
(Uma das características do Falso Entendido é a falsa modéstia.)
– Você, no momento, aconselharia que tipo de aplicação?
– Bom. Depende do yield pretendido, do throwback e do ciclo refratário. Na faixa de papéis top market – ou o que
nós chamamos de topi-maque –, o throwback recai sobre o repasse e não sobre o release, entende?
– Francamente, não.
Aí o Falso Entendido sorri com tristeza e abre os braços como quem diz “É difícil conversar com leigos…”.
Uma variação do Falso Entendido é o sujeito que sempre parece saber mais do que ele pode dizer. A conversa é sobre
política, os boatos cruzam os ares, mas ele mantém um discreto silêncio. Até que alguém pede a sua opinião e ele pensa
muito antes de se decidir a responder:
– Há muito mais coisa por trás disso do que vocês pensam…
Ou então, e esta é mortal:
– Não é tão simples assim…
Faz-se aquele silêncio que precede as grandes revelações, mas o falso informado não diz nada. Fica subentendido
que ele está protegendo as suas fontes em Brasília.
E há o falso que interpreta. Para ele tudo o que acontece deve ser posto na perspectiva de vastas transformações
históricas que só ele está sacando.
– O avanço do socialismo na Europa ocorre em proporções diretas ao declínio no uso da gordura animal nos países
do Mercado Comum. Só não vê quem não quer.
E se alguém quer mais detalhes sobre a sua insólita teoria ele vê a pergunta como manifestação de uma hostilidade
bastante significativa a interpretações não ortodoxas, e passa a interpretar os motivos de quem o questiona, invocando
a Igreja medieval, os grandes hereges da história, e vocês sabiam que toda a Reforma se explica a partir da prisão de
ventre de Lutero?
Mas o jargão é uma tentação. Eu, por exemplo, sou fascinado pela linguagem náutica, embora minha experiência no mar
se resuma a algumas passagens em transatlânticos onde a única linguagem técnica que você precise saber é “Que horas servem
o bufê?”. Nunca pisei num veleiro e se pisasse seria para dar vexame na primeira onda. Eu enjoo em escada rolante. Mas, na
minha imaginação, sou um marinheiro de todos os calados. Senhor de ventos e de velas e, principalmente, dos especialíssimos
nomes de equipagem.
Me imagino no leme do meu grande veleiro, dando ordens à tripulação:
– Recolher a traquineta!
– Largar a vela bimbão, não podemos perder esse Vizeu.
O Vizeu é um vento que nasce na costa ocidental da África, faz a volta nas Malvinas e nos ataca a boribordo, cheirando
a especiarias, carcaças de baleia e, estranhamente, a uma professora que eu tive no primário.
– Quebrar o lume da alcatra e baixar a falcatrua!
– Cuidado com a sanfona de Abelardo!
A sanfona é um perigoso fenômeno que ocorre na vela parruda em certas condições atmosféricas e que, se não
contido a tempo, pode decapitar o piloto. Até hoje não encontraram a cabeça do comodoro Abelardo.
– Cruzar a spínola! Domar a espátula! Montar a sirigaita! Tudo a macambúzio e dois quartos de trela senão afundamos, e o
capitão é o primeiro a pular.
– Cortar o cabo de Eustáquio!
(Luís Fernando Veríssimo. Publicada em “As Mentiras que os homens contam”.)