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Centenários anónimos
O Outono repete o modo como me vou esquecendo dos mortos, à medida que os dias encurtam
Não sei se há estação mais nefasta do que o Outono, mas as estações são o que elas fizeram conosco.
Por estes dias, o meu avô faria perto de cem anos. Talvez não valham de nada os centenários dos cidadãos
anónimos, comparados com os das pessoas célebres. Os sobreviventes lembram-se, quem sabe um deles
faz um brinde ou vai ao cemitério, trocam-se algumas palavras.
O Outono é a estação em que a natureza se parece mais com o que a passagem do tempo faz à lembrança
daqueles que amei. No começo, estão diante de mim, quase os vejo, ainda são nítidas as mãos e as caras.
Vão-se desbotando, com a passagem dos anos, primeiro ainda fantasmas, depois nem isso, quero lembrarme de como eram. Não consigo.
[...]
Arranjei uma máquina de escrever e escrevo uma página. Não estou habituada a ter de ter as frases na
cabeça ou a precisar de memorizar a frase anterior e a frase seguinte. Muito depressa, vejo que escrevo à
máquina como uma criança de seis anos, apesar de escrever todos os dias e de os meus dedos bailarem
pelo teclado com muita experiência, a máquina de escrever obriga-me a projectar as palavras no ar, como
se projectava nas aulas de geometria descritiva. Muito rapidamente, basta uma pequena alteração, e
percebo que não sei fazer aquilo que faço todos os dias.
Rabisco listas de coisas que gostava de mostrar ao meu pai morto e de experimentar com ele. Numa livraria,
decido escolher um livro pela capa e, sem saber a língua, compro uma antologia de histórias sobre pais.
Sinto-o guiar-me os passos, os caminhos. Como nos nossos passeios infantis, ele anda a meu lado pela
rua e tira-me o medo a cada momento.
Também as pessoas célebres, cujos centenários se comemoram, são pessoas anónimas para aqueles que
as amaram.
[...]
Djaimilia Pereira de Almeida. “Centenários anónimos”. In: Quatro cinco um. Novembro de 2022, p. 8.
Adaptado.