A cidade caminhava devagar
Henrique Fendrich
Então você que é o Henrique? Ah, mas é uma
criança ainda. Meu filho fala muito de você, ele
lê o que você escreve. Mas sente-se! Você gosta
de ouvir sobre essas coisas de antigamente, não
é? Caso raro, menino. A gente já não tem mais
com quem falar, a não ser com os outros velhos.
Só que os velhos vão morrendo, e com eles
vão morrendo as histórias que eles tinham para
contar. Olha, do meu tempo já são poucos por
aqui. Da minha família mesmo, eu sou o último,
não tenho mais irmão, cunhado, nada. Só na
semana passada eu fui a dois enterros. Um foi o
do velho Bubi. Esse você não deve ter conhecido.
Era alfaiate, foi casado com uma prima minha. E
a gente vai a esses enterros e fica pensando que
dali a pouco pode ser a nossa vez. Mas faz parte,
não é? É assim que a vida funciona e a gente só
pode aceitar.
Agora, muita coisa mudou também. A cidade já
é outra, nem se compara com a da minha época.
As coisas caminhavam mais devagar naquele
tempo. Hoje é essa correria toda, ninguém mais
consegue sossegar. Mudou muita coisa, muitos
costumes que a gente tinha foram ficando para
trás. Olha, é preciso que se diga também que
havia mais respeito. Eu vejo pelos meus próprios
netos, quanta diferença no jeito que eles tratam
os pais deles! Se deixar, são eles que governam a
casa. Consegue ver aquele quadro ali na parede?
Papai e mamãe… Eu ainda tinha que pedir bênção
a eles. A gente fazia as refeições juntos todos os
dias, e sempre no mesmo horário. Hoje é cada um
para um lado, uma coisa estranha, sabe? Parece
que as coisas mudam e a gente não se adapta.
E vai a gente tentar falar algo… Ninguém ouve,
olham para você como se tivessem muita pena da
sua velhice.
Aqui para cima tem um colégio. Cinco horas
da tarde, eles saem em bando. A gente até evita
estar na rua nesse horário. Por que você pensa
que eles se preocupam com a gente? Só falta eles
nos derrubarem, de tão rápido que eles andam.
As calçadas são estreitas e, se a gente encontrar
uma turma caminhando na nossa direção, quem
você acha que precisa descer, eles ou nós, os
velhos? É a gente… Nem parece que um dia eles
também vão ficar velhos como a gente.
A verdade é que as pessoas estão se
afastando, não estão se importando mais umas
com as outras. Nem os vizinhos a gente conhece
mais. Faz mais de um mês que chegou vizinho
novo na casa que era do Seu Erico e até agora a
gente não sabe quem é que foi morar lá. A Isolda
veio com umas histórias de a gente ir lá fazer
amizade, mas eu falei para ela que essa gente
vive em outro mundo, outros valores, e é capaz
até de pensarem mal da gente se a gente for lá.
Mas você deve achar que eu só sei reclamar,
não é? Tem coisa boa também, claro que tem.
Hoje as pessoas já não sofrem como na nossa
época. Ali faltava tudo, a gente não tinha nem
igreja para ir no domingo, imagine só. O padre
aparecia uma vez a cada dois meses e olhe lá. E
viajar para o centro? Só de carroça, e não tinha
asfalto, não tinha nada. Se chovia, a estrada
virava um lamaçal e a gente tinha que voltar. Isso
mudou, hoje está melhor. Hoje tem todas essas
tecnologias aí, é mais fácil tratar doença também.
Olha, se eu vivesse no tempo do meu pai, acho
que não teria chegado tão longe assim, porque ali
não tinha os remédios que eles precisavam, né?
Só que também tem essa questão da segurança,
que hoje a gente não tem quase nenhuma. A
gente tem até medo que alguém entre aqui em
casa. São dois velhos, o que a gente vai poder
fazer contra o ladrão?
Mas vamos sentar e tomar um café, a Isolda
já preparou. Tem cuque, lá da festa da igreja.
Se você viesse ontem, teria encontrado meu
filho, ele quem trouxe. Depois quero te mostrar
o álbum de fotos do papai. Está meio gasto, as
fotos estão amarelas… Mas é normal, né? São
coisas de outro tempo. Do tempo em que a cidade
caminhava mais devagar.
Adaptado de: <http://www.aescotilha.com.br/cronicas/henrique-fendrich/a-cidade-caminhava-devagar> . Acesso em: 28 jun. 2019.