TEXTO I
Esperança
Já se haviam passado cinquenta horas que Guillaumet
desaparecera numa travessia dos Andes, durante o inverno.
Voltando do fundo da Patagônia, fui ao encontro do piloto Deley,
em Mendoza. E nós dois, durante cinco dias, esquadrinhamos
aquela confusão de montanhas, sem descobrir coisa alguma.
Nossos dois aparelhos não bastavam. Parecia-nos que cem
esquadrilhas, navegando cem anos, não acabariam de explorar
aquele enorme maciço cujos picos se erguiam até sete mil metros.
Havíamos perdido toda a esperança. Quando eu e Deley
descemos em Santiago, os oficiais chilenos nos aconselharam a
suspender as buscas.
"É inverno. Esse companheiro de vocês se sobreviveu à
queda, não sobreviveu a noite. A noite, lá em cima, quando passa
sobre o homem, transforma-o em gelo." E quando eu novamente
me infiltrava entre os muros e os pilares gigantescos dos Andes já
sentia que não estava mais procurando Guillaumet: velava o seu
corpo, em silêncio, numa catedral de neve.
Afinal, depois de sete dias, quando eu almoçava, no
intervalo de dois voos, num restaurante de Mendoza, um homem
empurrou a porta e gritou... oh, apenas isto:
— Guillaumet... vivo!
E todos os desconhecidos que ali estavam se abraçaram.
Dez minutos mais tarde eu partia com dois mecânicos,
Lefebvre e Abri. Quarenta minutos depois, descia ao longo de uma
estrada, tendo reconhecido, não sei como, o carro que o conduzia
para não sei onde, nos lados de São Rafael. Foi um belo encontro:
choramos todos e esmagamos você em nossos abraços, vivo,
ressuscitado, autor de seu próprio milagre. Foi então que você
exprimiu, na sua primeira frase inteligível, um admirável orgulho
da espécie: "O que eu fiz, palavra que nenhum bicho, só um
homem, era capaz de fazer... Pensava: Minha mulher... se ela crê
que estou vivo, ela crê que estou andando. Os companheiros
creem que estou andando. Serei um covarde se não continuar
andando. E andava. Procurei não pensar, porque sofria demais,
minha situação era desesperada demais. Para ter a coragem de
andar.”
Só o desconhecido espanta os homens. Mas para quem
o enfrenta, ele cessa de ser o desconhecido. Sobretudo se é
olhado com essa gravidade lúcida. A coragem de Guillaumet é,
antes de tudo, um efeito de sua probidade. Sua verdadeira
qualidade não é essa. Sua grandeza é a de sentir-se responsável.
Responsável por si, pelo seu avião, pelos companheiros que o
esperam. Ele tem nas mãos a tristeza ou a alegria desses
companheiros. Responsável pelo que se constrói de novo, lá,
entre os vivos, construção de que ele deve participar.
Responsável um pouco pelo destino dos homens, na medida de
seu trabalho.
SAINT-EXUPÉRY, Antoine de, 1900-1944 Terra dos homens/ Antoine de Saint-Exupéry;
tradução Rubem Braga. — 1ª Ed. especial. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. P.
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