O suor e a lágrima
(Carlos Heitor Cony)
Fazia calor no Rio, 40 graus e qualquer coisa, quase 41. No
dia seguinte, os jornais diriam que fora o mais quente deste
verão que inaugura o século e o milênio. Cheguei ao Santos
Dumont, o voo estava atrasado, decidi engraxar os sapatos.
Pelo menos aqui no Rio, são raros esses engraxates, só existem
nos aeroportos e em poucos lugares avulsos.
Sentei-me naquela espécie de cadeira canônica, de coro de
abadia pobre, que também pode parecer o trono de um rei
desolado de um reino desolante.
O engraxate era gordo e estava com calor — o que me pareceu
óbvio. Elogiou meus sapatos, cromo italiano, fabricante ilustre,
os Rosseti. Uso-o pouco, em parte para poupá-lo, em parte
porque quando posso estou sempre de tênis.
Ofereceu-me o jornal que eu já havia lido e começou seu
ofício. Meio careca, o suor encharcou-lhe a testa e a calva.
Pegou aquele paninho que dá brilho final nos sapatos e com
ele enxugou o próprio suor, que era abundante.
Com o mesmo pano, executou com maestria aqueles
movimentos rápidos em torno da biqueira, mas a todo instante
o usava para enxugar-se — caso contrário, o suor inundaria o
meu cromo italiano.
E foi assim que a testa e a calva do valente filho do povo
ficaram manchadas de graxa e o meu sapato adquiriu um
brilho de espelho à custa do suor alheio. Nunca tive sapatos
tão brilhantes, tão dignamente suados.
Na hora de pagar, alegando não ter nota menor, deixei-lhe um
troco generoso. Ele me olhou espantado, retribuiu a gorjeta
me desejando em dobro tudo o que eu viesse a precisar nos
restos dos meus dias.
Saí daquela cadeira com um baita sentimento de culpa. Que
diabo, meus sapatos não estavam tão sujos assim, por míseros
tostões, fizera um filho do povo suar para ganhar seu pão.
Olhei meus sapatos e tive vergonha daquele brilho humano,
salgado como lágrima.
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