TEXTO – OS COITADINHOS
Clóvis Rossi — Folha de São Paulo, 25/02/01
SÃO PAULO – Anestesiada e derrotada, a sociedade nem
está percebendo a enorme inversão de valores em curso.
Parece aceitar como normal que um grupo de criminosos
estenda faixas pela cidade e nelas fale de paz.
Que paz? Não foram esses mesmos adoráveis senhores que decapitaram ou mandaram decapitar seus próprios
companheiros de comunidade durante as recentes rebeliões?
A sociedade ouve em silêncio o juiz titular da Vara de
Execuções Penais, Otávio Augusto Barros Filho, dizer que
não vai resolver nada a transferência e isolamento dos líderes
do PCC (Primeiro Comando da Capital ou Partido do Crime).
Digamos que não resolva. Qual é a alternativa oferecida
pelo juiz? Libertá-los todos? Devolvê-los aos presídios dos
quais gerenciam livremente seus negócios e determinam quem
deve viver e quem deve morrer?
Vamos, por um momento que seja, cair na real: os presos,
por mais hediondos que tenham sido seus crimes, merecem,
sim, tratamento digno e humano. Mas não merecem um
micrograma que seja de privilégios, entre eles o de determinar
onde cada um deles fica preso.
Há um coro, embora surdo, que tenta retratar criminosos
como coitadinhos, vítimas do sistema. Calma lá. Coitadinhos
e vítimas do sistema, aqui, são os milhões de brasileiros que
sobrevivem com salários obscenamente baixos (ou sem salário
algum) e, não obstante, mantêm-se teimosamente honestos.
Coitadinhos e vítimas de um sistema ineficiente, aqui,
são os parentes dos abatidos pela violência, condenados à
prisão perpétua que é a dor pela perda de alguém querido, ao
passo que o criminoso não fica mais que 30 anos na cadeia.
Parafraseando Millôr Fernandes: ou restaure-se a
dignidade para todos, principalmente para os coitadinhos de
verdade, ou nos rendamos de uma vez à Crime Incorporation.