A questão refere-se ao texto abaixo.
Hoje talvez não seja tão intenso, pois, se o celular pegar, distraímo-
-nos com ele. Mas antes, ao esperar o elevador, nada havia a fazer senão ler e reler aquele aviso, em letras brancas sobre fundo
preto, ou vice-versa, coberto por uma moldura de acrílico – “Antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo encontra-se parado neste andar”. Assombrado, ameaçador, algo ininteligível
pesava sobre a duração daquela espera, acompanhando até o “térreo” (outra palavra estranha) quem afinal se aventurar a entrar.
O Mesmo. Aqui, neste andar. Sim, antes de entrar. Verifique. A imprecisão em relação ao sujeito da frase (o elevador ou o “mesmo”?); o fato
de que coisas demais são ditas sobre um maquinismo (“verifique se
está parado” é quase temer que fuja de repente); a linguagem burocrática, sem molejo, mas em situação privada, onde estávamos quase
sempre sozinhos, ou seja: dirigida, como em alguns textos de Kafka,
diretamente a você; a lembrança mórbida de acidentes horrorosos
(de gente que caiu em poços de elevador, como Anecy Rocha) – tudo
isso dava um tom zicado à espera. Reproduzida por força da lei estadual de 11 de março de 1997, presente portanto em todos os andares de
inúmeros prédios do estado de São Paulo, a própria repetição infindável alavancava o mistério e “mesmidade” da frase, gerando aos poucos
um longo histórico de debates e comentários na internet, e até uma
comunidade virtual – “Eu tenho medo do Mesmo” (com maiúscula).
Pessoalmente, tenho mesmo muito medo dele. Não sei onde começa nem onde termina, e detesto, particularmente, sua potência
de disfarce, infiltrando-se em tudo como um penetra de festas profissional, sem nunca dizer o nome. [...]. Confunde-se, nesse sentido, com o tema, provavelmente complementar, da espera – o tenente Giovanni Drogo, em O deserto dos tártaros, de Dino Buzzati
[...]. Ou, ainda, Bill Murray, no Feitiço do tempo (Groundhog day,
1993), em que a personagem fica presa num dia infindável, repetido
a cada manhã, e do qual não consegue escapar nem sequer através
do suicídio (suicida-se, de fato, dezenas de vezes) – até apaixonar-se
(e ser correspondido) por sua colega de trabalho (Andie MacDowell).
RAMOS, Nuno. Verifique se o mesmo. São Paulo: Todavia, 2019 (adaptado).