Texto – REDE
O diário corresponde, na fala, à conversa com os próprios botões. Mas não se pode conversar
apenas com botões. Inclusive, aprende-se a falar pela observação dos outros, pelo interesse nos outros. A
conversa consigo mesmo, da qual as crianças são mestras, indica claramente a presença da falta.
Um tanto paradoxal esta expressão: “presença da falta”. Porém, precisa. A falta que todo homem
carrega consigo o tempo todo, tanto dos outros quanto daquele que ele podia ser mas ainda não é, se faz
uma presença viva, perceptível no papo das crianças com seus amigos imaginários, no sonho dos adultos
com seus desejos frustrados, na insônia dos apaixonados em suas camas de solteiro. A falta que todo
homem carrega consigo o tempo todo é aquela que explica e dá sentido a boa parte dos seus atos e lapsos.
Eis a palavra, testemunhando a ausência e a falta. A falta depositada nos diários testemunha a falta
do autoconhecimento e, é claro, a necessidade da autoafirmação. Mas não nos falta apenas conhecer-nos.
Falta-nos conhecer tudo e todos. Logo, não se escrevem única e exclusivamente diários. Escrevem-se
bilhetes, cartas, artigos de jornal, livros e discursos públicos, a cada texto se marcando a presença de
determinada falta.
Quando então o ato muda.
O diário afirma o indivíduo para si mesmo. Uma carta já o afirma para outro sujeito, e daí se tem de
pensar neste outro no momento da escrita, uma vez que ele passou a fazer parte do ato. O outro, ao
adentrar o espaço da comunicação, modifica radicalmente o texto: no visual, no estilo, na sequência, nas
informações.
Por sua vez, um artigo de jornal, ou um capítulo teórico como este, buscam bem mais de um outro
só, buscam muitos outros leitores (quanto mais melhor). Todos estes outros, desejados e possíveis,
invadem e transformam/transtornam a mensagem, e não poderia ser de outro modo. Tudo o que existe
cobra a sua existência. Se existe um leitor, pelo simples fato de existir, ele estará cobrando seu espaço no
texto, na carta – cobrando que a coisa se escreva de modo que ele entenda (ele, e talvez mais ninguém,
pois por enquanto tratamos de uma carta), que ele sinta e possa responder. Da mesma maneira, se existem
mil leitores, pelo simples e inusitado (no Brasil) fato de existirem, eles estarão cobrando seu espaço no
artigo, no livro teórico, no romance – cobrando que a coisa se escreva de modo a que se entenda, e se
sinta, e mexa por dentro, e cobrando que se diga algo que ainda não tenha sido dito, para valer a pena.
BERNARDO, Gustavo. Redação inquieta. Rio de Janeiro: Globo, 1988 (trecho).