Jogar bonito
A bola não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro
falso; a bola foi feita para entrar no gol
Antonio Prata | 24.fev.2024
"Uma hora a gente tem que parar de querer
jogar bonito e pensar em ganhar". A fala passou na
corredeira do Instagram, não vi quem era, depois fui
atrás e já tava perdida na foz em que os posts se diluem.
Achei que pudesse ser o Dunga. Passei a semana
ouvindo entrevistas dele, mas não encontrei a
declaração.
Tanto faz. O sentido é o que importa. Sou um
ignorante sobre futebol, mas sei, por outros caminhos,
que quem opõe eficiência à beleza não entende picas
sobre a eficiência e necas sobre a beleza. Nenhum
jogador de frente pro gol recebe uma bola alta, vira de
costas e dá uma bicicleta. A bicicleta é o único recurso
que o cara tem de chutar pro gol, de costas pra ele.
Quem dá uma bicicleta não quer jogar bonito, quer
ganhar o jogo. Isso vale pro futebol e pra tudo.
Peguemos o símbolo mais clichê da beleza: a
flor. Ela não foi criada pelo Clovis Bornay ou por um
figurinista de Hollywood pro Met Gala. A flor é a obra
de milhões de anos de evolução com a finalidade única
de atrair insetos para polinizá-la. Flor não é "de
humanas", ela é "de biológicas" com grande base "de
exatas". Beleza não é enfeite.
"A forma segue a função", afirma a máxima da
escola de arquitetura e design Bauhaus. O vão livre do
MASP é lindo, acima de tudo, porque para em pé.
Quatro pilastras a dezenas de metros de distância
equilibram aquele mastodôntico paralelepípedo. A
ponte estaiada da Berrini é a mesma coisa. Toneladas
penduradas em fios. Já prédios neoclássicos da Cyrela
com colunas jônicas nas varandas são ridículos não só
porque Roma está a 9742 km de São Paulo, mas porque
as colunas na varanda não sustentam nada, além do
nosso caipiríssimo subdesenvolvimento estético.
Essa incompreensão entre eficiência e beleza
é responsável por grande parte da nossa pífia produção
audiovisual. Nelson Rodrigues dizia que o problema do
teatro nacional (podemos estender ao audiovisual) era
que todo mundo queria ser gênio. O autor. O ator. O
iluminador. O diretor. Ninguém tava nem aí pra
história. Sidney Lumet, em seu livro "Making movies",
diz que tem um único elogio a qualquer pessoa da
equipe, numa filmagem: "estamos fazendo o mesmo
filme". A história que manda. O nome disso é "as
instituições estão funcionando".
Graciliano Ramos, que, se escrevesse em russo
ou inglês, teria um Nobel, disse "Deve-se escrever da
mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas. Elas
começam com uma primeira lavada, molham a roupa
suja na beira da lagoa, torcem o pano, molham-no
novamente, voltam a torcer. Ensaboam e torcem uma,
duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada.
Batem o pano na pedra limpa, e dão mais uma torcida
e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só
gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas
dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para
secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a
mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar,
brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.".
Na minha busca pelo YouTube, não achei a fala
supostamente do Dunga sobre jogar bonito, mas acabei
vendo uns jogos com ele na Copa de 94. Dunga dá
passes precisos, do campo de defesa aos pés do
Romário, do Bebeto, linhas retas de 20, 30 metros,
perfeitas, que levam ao gol. A bola não foi feita para
enfeitar, brilhar como ouro falso; a bola foi feita para
entrar no gol. Bonito.
PRATA, Antonio. Jogar bonito. Folha de São
Paulo, 24 de fevereiro de 2024. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/antoni
oprata/2024/02/jogar-bonito.shtml. Acesso
em: 02 mar. 2024.