Leia a crônica de Carlos Drummond de Andrade.
Brasileiro Cem-Milhões
Telefonei para a maternidade indagando se havia
nascido o bebê no
100.000.000, e não souberam
informar-me:
— De zero hora até este momento nasceram oito, mas
nenhum foi etiquetado com esse número.
É uma falha do nosso registro civil: as crianças não
recebem números ao nascer. Dão-lhes apenas um
nome, às vezes surrealista, que o acompanhará por
toda a vida como pesadelo, quando a numeração pura
e simples viria garantir identidade insofismável, poupando ainda o vexame de carregar certos antropônimos. Centenas de milhares nascem João ou José, mais
o homem ou a mulher 25.786.439 seria uma única
pessoa viva, muito mais fácil de cadastrar no Imposto
de Renda e nos mil outros fichários com que é policiada a nossa existência.
Passei por baixo do viaduto, onde costumam nascer
filhos do vento, e reinava uma paz de latas enferrujadas e grama sem problemas. Ninguém nascera ali
depois da meia-noite. O dia 21 de agosto, marcado
para o advento do brasileiro cem-milhões, transcorria
sem que sinal algum, na terra ou no ar, registrasse o
acontecimento.
Costumo acreditar nos bancos, principalmente nos
oficiais, e se o Banco Nacional da Habitação, através
do Serfhau, garantiu que nessa segunda-feira o Brasil
atingiria a cifra redonda de 100 milhões de habitantes,
é porque uma parturiente adrede orientada estaria de
plantão para perfazer esse número.
Verdade seja que o IBGE, pelo Centro Brasileiro de
Estudos Demográficos, julgou prematura a declaração,
e só para o trimestre de outubro/dezembro nos
promete o brasileiro em questão. Não ponho em
dúvida sua autoridade técnica, mas um banco é um
banco, ainda mais se agência governamental, e a esta
hora deve ter recolhido nosso centésimo milionésimo compatrício em berço especial da casa própria,
botando-lhe à cabeceira um cofre de caderneta de
poupança.
É que me custa admitir o nascimento desse garoto,
ou garota, sem o amparo de nossas leis sociais,
condenado a ser menos que número – uma dessas
crianças mendicantes, que não conhecerão as
almofadas da felicidade. Não queria que a televisão
lhe desse um carnê e uma viagem à Grécia, nem
era preciso que Manchete lhe dedicasse 10 páginas
coloridas, sob o patrocínio do melhor leite em
pó. Mas gostaria que viesse ao mundo com um
mínimo de garantia contra as compulsões da miséria
e da injustiça, e de algum modo representasse
situação idêntica de milhões de outras crianças que
recebessem – estou pedindo muito? – não somente o
dom da vida, mas oportunidades de vivê-la.
Seria vaidade irrisória proclamar-se ele, o 100.000.000o
brasileiro, membro eufórico da geração dos 100
milhões, e saber-se apenas mais um marginalizado,
que só por artifício de média ganha sua fatia no bolo
do Produto Nacional Bruto.
Não desejo o herói do monumento nem mártir
anônimo. Prefiro vê-lo como um ser capaz de fazer
alguma coisa de normal numa sociedade razoavelmente
suportável, em que a vida não seja obrigação estúpida,
sem pausa para fruir a graça das coisas naturais e o que
lhes acrescentou a imaginação humana.
Olho para esse brasileiro cem-milhões, nascido ontem
ou por nascer daqui a algumas semanas, como se ele
fosse meu neto… bisneto, talvez. Pois quando me dei
conta de mim, isto aí era um país de 20 milhões de
pessoas, diluídas num território quase só mistério, que
aos poucos se foi desbravando, mantendo ainda bolsões de sombra. Vi crescer a terra e lutarem os homens,
entre desajustes e sofrimentos. Os maiorais que dirigiam o processo lá se foram todos. Vieram outros e
outros, e encontro nesta geração um novo rosto de
vida que se interroga. Há muita ingenuidade, também
muita coragem, e os problemas se multiplicam com o
crescimento desordenado. Somos mais ricos… e também mais pobres.
Meu querido e desconhecido irmão no
100.000.000,
onde quer que estejas nascendo, fica de olho no
futuro, presta atenção nas coisas para que não façam
de ti subproduto de consumo, e boa viagem pelo
século XXI adentro.