TEXTO I
UTILIDADES DEMAIS
Flanando outro dia pela avenida Rio Branco, vi-me sem querer numa galeria formada por
camelôs na cidade do Rio de Janeiro. E, como estava ali, caí na tentação de procurar um
objeto: uma lanterninha, daquelas micro, de plástico, a pilha. O camelô me mostrou uma
pequena peça, que acoplou a seu celular, e produziu um jatinho de luz. Agradeci e
respondi que não me servia – “Não uso celular”, expliquei.
O camelô se escandalizou: “Não usa celular???”, perguntou, com vários pontos de
interrogação e num volume que o fez ser ouvido por todo mundo em volta. A frase se
espalhou pelos demais camelôs e, em segundos, à medida que eu passava pelo corredor
humano, podia sentir os dedos apontados para mim e a frase: “Não usa celular!!!”. Para
eles, eu devia equivaler a alguém que ainda não tinha aderido ao banho quente ou à luz
elétrica. Acho até que um camelô me fotografou, talvez para mostrar a algum amigo
incrédulo – como pode haver, em 2017, quem não use celular?
Consciente de ser um anacronismo ambulante, confesso-me esta pessoa e me atrevo a
dizer que o celular nunca me fez falta – e continua não fazendo. Para me comunicar, vivo
hoje mais ou menos como em 1990, quando o treco ainda não existia e nem se pensava
no assunto.
Ninguém deixa de falar comigo por falta de telefone. Se estou em casa, atendo àquele
aparelho que hoje chamam, com desprezo, de “fixo”. Se tiver de sair, faço as ligações de
que preciso e vou alegremente para a rua. Se eu estiver fora e alguém me telefonar,
paciência – se for importante, ligará de novo.
Por que não uso celular? Porque, com suas 1001 utilidades, tipo Bombril, ele é capaz de
me escravizar. O único jeito é manter-me à distância – até o dia em que, com ou sem ele,
provavelmente ficarei inviável de vez.
CASTRO, Ruy. Folha de São Paulo. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/ colunas/ruycastro/2017/07/1905766-utilidades-demais.shtml. Acesso em 03/01/2022. Adaptado.