Brennand
Na Oficina de Francisco Brennand tudo é primoroso e
interessante.
Exatamente um ano atrás eu estava em Recife. Em meio a
várias reflexões e compromissos acadêmicos, acionei o
antigo desejo de conhecer a Oficina Brennand, no bairro
Várzea. A experiência foi mística, não tenho como definir de
outra forma. Revejo agora fotografias desse passeio e me
transporto de volta para lá. Reencontro as estátuas
protetoras, os bichos míticos: um mundo de fábulas íntimas
que eu percorria, como se entrasse por baixo das pálpebras
de Brennand e pudesse conhecer as histórias que ele
sonhou durante décadas, para depois nascerem petrificadas.
Eu dava voltas, contornava os objetos, tornava a um e outro,
comparando. Queria adivinhar a experiência geradora, o
impulso antes da obra, o símbolo do cisne, do jaguar, do
pássaro rompendo o ovo — que vontade precedeu cada
imagem?
E os textos (sim, eles também estavam ali, nas paredes, tão
plásticos quanto os outros seres): “Não interrompam este
silêncio. Não interrompam este sonho”. Fragmentos de
Ariano Suassuna, de Joseph Conrad ou dos Eclesiastes
criavam estações — paradas necessárias para deixar o
pensamento ecoar.
Há portais nos jardins, painéis de cerâmica — várias
edificações, refúgios para diferentes propósitos do autor. No
prédio principal se encontram as obras-primas em escultura,
com insistentes formas eróticas. Cabeças inclinadas
sugerindo falos, gigantescos elementos priápicos a compor
tantos personagens — Galatea, Hiera, Halia, Oreste,
Calígula, Édipo, Vênus, Semíramis. E as figuras femininas,
fendidas e férteis, surgem no esbanjamento daquela orgia
estética. Muitas referências clássicas, históricas ou míticas,
mas cada uma vista sob esta perspectiva: o festejo do corpo.
A abundância vital.
Não tive dúvidas de que a longevidade do autor está ligada a
esse tipo de celebração. Depois de passear durante horas
pelo espaço, eu o encontrei — e ali, na figura daquele
homem alto, de 95 anos, de repente vi concentrados todos
os ancestrais, Rembrandt, Monet, Balthus, Picasso… Foi
como se eu entrasse no olho do Aleph, ou me empoleirasse
em frente à Máquina do Mundo, levada por espirais de
tempo para frente e para trás, condensadas num minuto.
Depois tudo se resumiu numa frase: “Ele não se submeteu”,
surgida enquanto eu cumprimentava Francisco Brennand e
recebia o seu presente — o Diário em quatro volumes (O
nome do livro) que ainda hoje continuo a ler. A frase era
uma espécie de lema para compreender a Oficina, a
produção em esculturas e pinturas, os temas, os estudos…
A persistência de um criador que constrói o próprio mundo:
isso representa o mais profundo pacto que se pode ter com a
arte.
Mas o turista em Recife deve prestar atenção para não
confundir a Oficina de Francisco Brennand com o Instituto
Ricardo Brennand. Este último apresenta-se como uma
coleção montada por um industrial parente do artista. O
espaço tem um contexto muito agradável, cercado pela mata
atlântica. Mas quem busca a fruição típica dos museus sai
de lá horrorizado: as peças estão dispostas sem qualquer
coerência cronológica ou estética, sem legenda, seguindo
apenas o gosto pessoal do proprietário ou alguma anedota
de sua vida, que um esforçado monitor buscava me
esclarecer.
O visitante deveria ser advertido de que o lugar foi concebido
como um depósito, ou como a extensão da casa de alguém.
Quem paga o ingresso pode espiar (mas não aprender,
como é uma função dos museus). Sim, espiamos um
acúmulo de obras; genuínas ou reproduções, estavam todas
indistintamente juntas.
No jardim, uma escultura de Botero formava grupo com um
rinoceronte de outra autoria e época — e o motivo daquela
junção era o material comum, de que eram feitas as peças!
Numa das salas, um tapete de Gobelin ficava em frente a
uma mão do ateliê de Rodin. Um Bom Jesus da Agonia, do
Barroco mineiro, bem como um arco de igreja do mesmo
período, fazia a gente pensar na história dos trajetos,
saques, revendas e complexas transações comerciais que
as obras sacras — não apenas do Brasil — já sofreram. E,
para ir a um local bem distante, havia ali também a China,
representada por um gigantesco e terrível navio feito de
marfim (quem puder, pense no tamanho da matança que
uma obra assim representa).
A sala das figuras de cera, mimetizando em paralisia o
julgamento de Nicolas Fouquet, juntamente com o castelo
onde estão guardadas as armas — de uma variedade
abominável, dentre canivetes, sabres, cimitarras, pistolas — trouxe um toque curioso à visita, que desse modo não me
proporcionou somente angústia. Mas eu precisei passar um
bom tempo em meio às plantas para reencontrar um eixo de
tranquilidade. A grande beleza do Instituto é de fato a
natureza circundante; na Oficina, ao contrário, tudo é
primoroso e interessante. Não fica difícil fazer uma escolha.
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