Pregos
Foi de repente. Dois quadros que tenho na parede da
sala despencaram juntos. Ninguém os havia tocado, nenhuma
ventania naquele dia, nenhuma obra no prédio, nenhuma
rachadura. Simplesmente caíram, depois de terem permanecido seis anos inertes. Não consegui admitir essa gratuidade,
fiquei procurando uma razão para a queda, haveria de ter
uma.
Poucos dias depois, numa dessas coincidências que não
se explicam, estava lendo um livro do italiano Alessandro
Baricco, chamado “Novecentos”, em que ele descrevia exatamente a mesma situação. “No silêncio mais absoluto, com
tudo imóvel ao seu redor, nem sequer uma mosca se movendo, eles, zás. Não há uma causa. Por que precisamente neste
instante? Não se sabe. Zás. O que ocorre a um prego para
que decida que já não pode mais?”
Alessandro Baricco não procura desvendar esse mistério, apenas diz que assim é. Um belo dia a gente se olha no
espelho e descobre que está velho. A gente acorda de
manhã e descobre que não ama mais uma pessoa. Um avião
passa no céu e a gente descobre que não pode ficar parado
onde está nem mais um minuto. Zás. Nossos pregos já não
nos seguram.
Costumamos chamar essa sensação de “cair a ficha”,
mas acho bem mais poética e avassaladora a analogia com
os quadros na parede. Cair a ficha é se dar conta. Deixar cair
os quadros é um pouco mais que isso, é perder a resistência,
é reconhecer que há algo que já não podemos suportar. Não
precisa ser necessariamente uma carga negativa, pode ser
uma carga positiva, mas que nos obriga a solicitar mais força
dentro de nós.
Nascemos, ficamos em pé, crescemos e a partir daí
começamos a sustentar nossas inquietações, nossos desejos
inconfessos, algum sofrimento silencioso e a enormidade da
nossa paciência. Nossos pregos são feitos de material maciço, mas nunca se sabe quanto peso eles podem aguentar. O
quanto podemos conosco? Uma boa definição para felicidade: ser leve para si mesmo.
Sobre os meus quadros: foram recolocados na parede.
Estão novamente fixos no mesmo lugar. Até que eles, ou eu,
sejamos definitivamente vencidos pelo cansaço.
(Martha Medeiros. Pregos. Em: março de 2010.)