As caridades odiosas
Foi uma tarde de sensibilidade ou de suscetibilidade? Eu
passava pela rua depressa, emaranhada nos meus pensamentos, como às vezes acontece. Foi quando meu vestido me reteve: alguma coisa se enganchava na minha saia. Voltei-me e
vi que se tratava de uma mão pequena e escura. Pertencia a
um menino a que a sujeira e o sangue interno davam um tom
quente de pele. O menino estava de pé no degrau da grande
confeitaria. Seus olhos, mais do que suas palavras meio engolidas, informavam-me de sua paciente aflição. Paciente demais.
Percebi vagamente um pedido, antes de compreender o seu
sentido concreto.
– Um doce, moça, compre um doce para mim.
Acordei finalmente. O que estivera eu pensando antes de
encontrar o menino? O fato é que o pedido pareceu cumular
uma lacuna, dar uma resposta que podia servir para qualquer
pergunta, assim como uma grande chuva pode matar a sede
de quem queria uns goles de água.
Sem olhar para os lados, por pudor talvez, sem querer
espiar as mesas da confeitaria onde possivelmente algum
conhecido tomava sorvete, entrei, fui ao balcão e disse com
uma dureza que só Deus sabe explicar: um doce para o menino.
De que tinha eu medo? Eu não olhava a criança, queria
que a cena humilhante para mim, terminasse logo. Perguntei-
-lhe: que doce você...
Antes de terminar, o menino disse apontando depressa
com o dedo: aquelezinho ali, com chocolate por cima. Por um
instante perplexa, eu me recompus logo e ordenei, com
aspereza, à caixeira que o servisse.
– Que outro doce você quer? Perguntei ao menino escuro.
Este, que mexendo as mãos e a boca ainda espera com
ansiedade pelo primeiro, interrompeu-se, olhou-me um
instante e disse com uma delicadeza insuportável, mostrando
os dentes: não precisa de outro não. Ele poupava a minha
bondade.
– Precisa sim, cortei eu ofegante, empurrando-o para a
frente. O menino hesitou e disse: aquele amarelo de ovo.
Recebeu um doce em cada mão, levando as duas acima da
cabeça, com medo talvez de apertá-los... E foi sem olhar para
mim que ele, mais do que foi embora, fugiu. A caixeirinha
olhava tudo:
– Afinal uma alma caridosa apareceu. Esse menino
estava nesta porta há mais de uma hora, puxando todas as
pessoas mas ninguém quis dar.
Fui embora, com o rosto corado de vergonha. De
vergonha mesmo? Eu estava cheia de um sentimento de amor,
gratidão, revolta e vergonha. Mas, como se costuma dizer, o
sol parecia brilhar com mais força. Eu tivera a oportunidade de... E para isso foi necessário que outros não lhe tivessem
dado doce.
E, agora, sozinha, meus pensamentos voltavam lentamente a ser os anteriores, só que inúteis.
(As caridades odiosas. Clarice Lispector. Com adaptações.)