As três bonecas
Ju morava numa rua tranquila com nome de heroína: Anita Garibaldi. Dali, das amigas da mãe, guarda boas lembranças: colos,
cafunés, filhos, mimos, conselhos e broncas. Uma, ao ver Ju lavando alface como quem esfrega roupa, havia lhe ensinado a delicadeza
das folhas. Outra, Marieta, lhe deixou uma lição. Numa visita, aproximou-se de Ju, que brincava de bonecas. E disse:
– Tenho uma boneca pra você!
Um forte desejo se acendeu na menina.
– Grande, como um bebê! Cabelos claros e curtos. Enroladinhos.
A menina sorriu. Mais tarde, folheando uma revista, adivinhou a boneca.
– É assim! – disse, abraçada à revista.
Deu-lhe o nome de Cecília. Chamaria as amigas, cada uma traria sua filha e fariam um lanche. Brincariam no jardim e ririam
um bocado, até tarde. Cansadas, iriam cedo pra cama. Adormecer com Cecília seria melhor que mil mundos.
Foi uma espera em vão. Ainda lidava com a frustração, quando a mulher retornou. A claridade, que vinha do corredor,
marcava a comprida silhueta que entrou falando:
– Tua boneca está lá guardada, esperando.
“Esperando o quê?”.
– Podia ter trazido. Comprei outra.
“Agora são duas bonecas!”, empolgou-se.
A mulher continuava:
– É moreninha, bem escura, cabelos compridos, arrumados em trança até a cintura. “Seria cor de jabuticaba?” Ju amava.
Imaginou a boneca. “Será de pano? Fofa? Tem pano que tem cheiro bom, fino e macio, gostoso de pegar. Tem pano que é mais
duro e pinica… Carmela!” Agora, numa só festa, apresentaria Cecília e Carmela às amigas. Já as via juntas, duas irmãs, cada uma
de uma cor.
“Mas por que ela não trouxe logo as bonecas?”; “Vai ver que ela não sabia que ia passar aqui.”; “Vai ver que, outro dia,
traz as duas.”; “Vai ver que…”; “vai ver…” Pensou durante a aula, em casa e antes de dormir.
Sonhou com Cecília e Carmela. Andaram de roda gigante, tão alto… Tocando as nuvens, Ju pegou um pedaço e experimentou.
Azeda demais! Torceu o nariz, as outras riram. Ao acordar, procurou as bonecas e não achou. Onde estavam? Embaixo da cama?
Dentro do armário? Na gaveta? Ou na casa de Marieta? Será que ela entregou para depois sequestrá-las? Se ela ia tirar, pra quê iria
dar? Além de tudo, era amiga da mãe, por que faria isso? Só se a mãe não soubesse quem era a verdadeira Marieta…
Meses depois, ela chegou. A boneca não, Marieta! E falou pela terceira vez:
– Tenho outra boneca pra você. Podia ter trazido.
“Três? Sério?”
Daqui a pouco, só um reboque pra tanta promessa. Ju não se deixou enrolar. Um dia, fantasiou com Anita. Com nome de
guerreira, lutaria, salvaria todas do cativeiro. A essa altura, era o que pensava: cativeiro.
Volta e meia, acontecia de sonhar com as três. Faziam estripulias, criavam brincadeiras e danças malucas e rolavam de rir.
Um dia, Ju rolou pro chão mesmo. Doeu cotovelo, doeu bumbum, doeu tudo! Até a alma.
O tempo passou, tanto e mais um tico. Ju cresceu e se mudou da Rua Anita Garibaldi. De Marieta, ficou a lição: heroína
mesmo era a criança que sobrevivia a certos adultos…
(Crônicas da infância: lembranças, afetos e reflexões [livro eletrônico] / organização Rosana Rios, Flávia Côrtes, Severino Rodrigues; ilustração Sandra
Ronca. 1. ed. São Paulo: Edições AEILIJ: RR Literatura, 2021. PDF. Vários autores.)