Texto 11
Teses
A jovem estudante queria 'qualquer coisa, dona Célia, que fale sobre A mulher e
seu condicionamento de explorada pelo machismo. Era este o título da obra. 'Vale
muitos pontos, sabe?' Cursava a última série do segundo grau e usava muito mal
as palavras, o que me predispunha a uma raiva perigosa das escolas, que eu certamente
iria descontar nela. Fiz de desentendida: condicionamento de explorada? É,
ela falou meio confusa, essas coisas de apanhar de homem, ser estrupada, ganhar
de menos que eles, a senhora entende, né? Serve uma poesia? Perguntei já com
um autor na cabeça. Não, poesia, não, poesia é sempre coisa muito - como é que
é gente? -, muito assim de leve, não é? E eu quero uma coisa forte, a senhora
entende, a professora é fogo na jaca. Meio macha? Ah, dona Célia, como é que
a senhora adivinhou? Eu estava gostando da tortura: então, você quer um texto
em prosa? Em prosa? Repetiu como se ouvisse língua estrangeira. Não, decidiu
categórica, não. Não é nem em poesia, nem em prosa. Quero é um artigo de umas
vinte linhas, tipo artigo de jornal, arrematou quase doutora, olhando no relógio.
Dá pra senhora fazer? Nem repare eu não entrar, tenho ainda pesquisa de ecologia
pra fazer. A moça era muito bonita e preferia que fosse analfabeta. A deficientíssjma instrução burlava nela algo muito delicado, punha em sua voz uns meios-
-tons acima do natural, tisnava de ansiedade sua respiração, com a horrível qualidade
dos males inconsdentes. É sal em carne podre, pensei, não vou fazer artigo
nenhum. Primeiro, porque as mulheres são as culpadas de todo mal, portanto
merecem o que sofrem. Segundo, porque não vou salvar a escola do Brasil, nem
esta menina, escrevendo lugares-comuns sobre nossa condição. Terceiro porque
não quero colaborar com esta mania estúpida das escolas de 'trabalharem o
folclore, 'trabalharem o social' e o que mais seja, nestas ocasiões fixas como calendários
lunares: trabalhinhos, textinhos, exposiçõezinhas, tudo como num ritual
de boas maneiras. Nada desce aos intestinos, vero lugar da aprendizagem. Dia
da Mulher? Ah, sei. E daí? Não posso te ajudar, não, Neide Ângela. Não?? Ela falou
assustada. Mas vou te emprestar um livro. Livro? Ah, disse decepcionada demais.
Não tenho tempo de ler, não, dona Célia, é matéria demais, uma outra hora a
senhora me empresta. Tão bonita ela, podia cuidar da vida enquanto descobria
sua vocação real, ser uma manicura competente, uma doceira de fama, mas não,
quer 'fazer faculdade. Quer porque quer. De quem é a culpa, já que as escolas
são ma-ra-vi-lho-sas? Ela periga tomar bomba. Está aí, vou contribuir caprichadamente para que ela tome bomba, para que volte este acontecimento formidável
da escola antiga, a Bomba, e recuperemos todos a capacidade de sentir medo e
respeito. E nem vale ela me olhar com este olhar pidão.
PRADO, Adélia. Filandras. Rio de Janeiro: Record, 2001. p.129-131.