Queremos a infância para nós
O mundo anda bem atrapalhado: de um lado, temos
crianças que se comportam, se vestem, falam e são
tratadas como adultos. Do outro, adultos que se
comportam, se vestem, falam e são tratados como
crianças. Pelo jeito, infância e vida adulta têm hoje pouco a
ver com idade cronológica.
Não é preciso muito para observar sinais dessa troca:
basta olhar as pessoas no espaço público. É corriqueiro
vermos meninas vestidas com roupas de adultos, inclusive
sensuais: blusas e saias curtas, calças apertadas, meiacalça e sapatos de salto. E pensar que elas precisam é de
roupa folgada para deixar o corpo explodir em
movimentos que devem ser experimentados... Mas
sempre há um traço que trai a idade: um brinquedo
pendurado, um exagero de enfeites, um excesso de
maquiagem, etc.
Se olharmos as adultas, vestidas com o mesmo tipo de
roupa das meninas descritas acima, vemos também
brinquedos, carregados como enfeites ou amuletos: nos
chaveiros, nas bolsas, nos telefones celulares, nos carros.
Isso sem falar nas mesas de trabalho, enfeitadas com
ícones do mundo infantil.
Criança pequena adora ter amigo imaginário, mas essa
maravilhosa possibilidade tem sido destruída, pouco a
pouco, pelo massacre da realidade do mundo adulto, que
tem colaborado muito para desfazer a fantasia e o faz-de-conta. Mas os legítimos representantes desse mundo, por
sua vez, não hesitam em ter o seu. Ultimamente, ele tem
sido comum e ganhou o nome de deus. Não me refiro ao
Deus das religiões e alvo da fé. A ideia de deus foi
privatizada, e cada um tem o seu, à sua imagem e
semelhança, mesmo sem professar religião nenhuma.
O amigo imaginário dos adultos chamado de deus é
aquele com quem eles conversam animadamente, a quem
chamam nos momentos de estresse, a quem recorrem
sempre que enfrentam dificuldades, precisam tomar uma
decisão ou anseiam por algo e, principalmente, para
contornar a solidão. Nada como ter um amigo invisível, já
que ele não exige lealdade, dedicação nem cobra nada,
não é?
E o que dizer, então, das brincadeiras infantis que
muitos adultos são obrigados a enfrentar quando fazem
cursos, frequentam seminários ou assistem a aulas? É um
tal de assoprar bexigas, abraçar quem está ao lado,
acender fósforo para expressar uma ideia, carregar uma
pedra para ter a palavra no grupo, escolher um bicho como
imagem de identificação, usar canetas coloridas para fazer
trabalhos, etc.
Mas, se existe uma manifestação comum a crianças e
adultos para expressar alegria, contentamento,
comemoração e afins, ela tem sido o grito. Que as crianças
gritem porque ainda não descobriram outras maneiras de
expressar emoções, dá para entender. Aliás, é bom
lembrar que os educadores não têm colaborado para que
elas aprendam a desenvolver outros tipos de expressão.
Mas os adultos gritarem desesperada e estridentemente
para manifestar emoção é constrangedor. Com tamanha
confusão, fica a impressão de que roubamos a infância das
crianças porque a queremos para nós, não?
SAYÃO, Rosely. “As melhores crônicas do Brasil”. In
cronicasbrasil.blogspot.com.