A última receita
A viúva Lemos adoecera; uns dizem que dos nervos, outros que de saudades do marido. Fosse o que fosse, a verdade é
que adoecera, em certa noite de setembro, ao regressar de um baile. Morava então no Andaraí, em companhia de uma tia
surda e devota. A doença não parecia coisa de cuidado; todavia era necessário fazer alguma coisa. Que coisa seria? Na opinião
da tia um cozimento de alteia e um rosário a não sei que santo do céu eram remédios infalíveis. D. Paula (a viúva) não contestava
a eficácia dos remédios da tia, mas opinava por um médico. Chamou-se um médico.
Havia justamente na vizinhança um médico, formado de pouco, e recente morador na localidade. Era o dr. Avelar, sujeito
de boa presença, assaz elegante e médico feliz. Veio o dr. Avelar na manhã seguinte, pouco depois das oito horas. Examinou a
doente e reconheceu que a moléstia não passava de uma constipação grave.
Uma única razão haveria para que ela aborrecesse o mundo: era se tivesse realmente saudades do marido. Mas não tinha.
O casamento fora um arranjo de família e dele próprio; Paula aceitou o arranjo sem murmurar. Honrou o casamento, mas não
deu ao marido nem estima nem amor. A ideia de morrer seria para ela não só a maior de todas as calamidades, mas também a
mais desastrada de todas as tolices.
Não quis morrer nem o caso era de morte.
A tia era surda, como sabemos, não ouvia nada da conversa entre os dois. Mas não era tola; começou a reparar que a
sobrinha ficava mais doente quando se aproximava a chegada do médico. Além disso nutria dúvidas sérias acerca da aplicação
exata dos remédios. O certo é porém que Paula, tão amiga de bailes e passeios, parecia realmente doente porque não saía de
casa.
Choviam convites de jantares e bailes. A viuvinha recusava-os todos por causa do seu mau estado de saúde.
Foi uma verdadeira calamidade.
Três meses correram assim, sem que a doença de Paula cedesse uma linha aos esforços do médico. Os esforços do médico
não podiam ser maiores; de dois em dois dias uma receita. Se a doente se esquecia do seu estado e entrava a falar e a corar
como quem tinha saúde, o médico era o primeiro a lembrar-lhe o perigo, e ela obedecia logo entregando-se à mais prudente
inação.
Gostavam um do outro sem se atreverem a dizer a verdade, simplesmente pelo receio de se enganarem. O meio de se
falarem todos os dias era aquele.
Casaram-se os dois daí a quarenta dias.
Tal é a história da última receita.
(Texto-fonte: Obra Completa, Machado de Assis, vol. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente em Jornal das Famílias. Em:
setembro de 1875.)