Fúria no trânsito
Existe uma forma simples de avaliar o grau de
evolução do ser humano. Basta observar dois sujeitos
após uma batida. Saem dos veículos arrebentando as
portas. Olhares ferozes. Torsos inclinados para a frente.
Mãos crispadas. Batem boca. Bastaria mudar o cenário,
trocar os ternos por peles e entregar um porrete para
cada um. Estaríamos de volta à pré-história. Poucas
atividades humanas despertam tanto o espírito
selvagem como a guerra no trânsito.
Tenho um amigo de fala mansa, calmo e sensato.
Outro dia estávamos no carro. Chuviscava. O suficiente
para que os carros entrassem numa luta desenfreada no
asfalto. Cortadas súbitas. Buzinas. Ele passou a costurar
por todos os lados. Fomos ao Morumbi Shopping. Havia
uma fila para o estacionamento vip (quem almoça em
alguns restaurantes de lá tem direito a manobrista
gratuito).
- Um idiota está parado lá na frente - ele anunciou.
- Por que idiota? Você não sabe o motivo.
Não pude terminar a frase. Agarrei-me ao banco. Ele
atirou o carro para a direita. O da frente fez o mesmo.
Para não bater, meu amigo jogou o seu sobre o canteiro.
Veio a pancada. O pneu arrebentou. O veículo parado
mexeu-se, vagarosamente, e partiu. Meu amigo
esbravejou. Trocou o pneu. Depois foi a uma
borracharia, onde acabou brigando também. Passou o
resto do dia num humor de cão. Telefonou:
- Tudo por culpa daquele imbecil!
Argumentei:
- Você não sabia o motivo de o carro estar parado. A
pessoa podia estar se sentindo mal. Pense. Por causa de
alguém que não conhece, você quase amassou o carro,
arrebentou seu pneu e está furioso. Como permite que
um desconhecido faça tudo isso com você?
Silêncio sepulcral. Depois, ouvi um clique do
telefone sendo desligado.
Costumo dirigir devagar. Quando vou para o Litoral
Norte é uma tortura. A estrada só tem uma pista, com
muitos locais de ultrapassagem proibida. Tento me
manter na velocidade exigida pelas placas. Adianta?
Alguém sempre gruda em mim. Volta e meia, quando
ultrapassam, ouço me xingarem.
Nestes tempos politicamente corretos, já não se
ouvem tantos gritos do tipo:
- Ô, dona Maria, vá pilotar fogão!
Entretanto, existe, sim, um preconceito contra
mulher ao volante. Confesso que também já tive. Hoje,
às vezes, passo por uma senhora dirigindo em paz.
Alguém do meu lado reclama:
- Olha lá, empatando o trânsito. Só podia ser mulher.
Lembro que as seguradoras costumam cobrar menos
de motoristas do sexo feminino. Causam menos
acidentes. Há algum tempo uma amiga bateu em uma
moto. Teve de se trancar no carro enquanto um bando
de motoqueiros solidários com o acidentado chutava seu
carro. Foi resgatada pelo socorro. Detalhe: o culpado era
o motoqueiro. Ninguém se machucou. Ela voltou para
casa apavorada.
Soube de um rapaz que certa vez foi fechado numa
grande avenida. Gritou:
- Safado, você vai ver!
Seguiu atrás, buzinando. O outro tentava fugir, ele
perseguia. Deu uma superfechada, obrigando o carro a
parar. Saiu furioso, pronto para a briga. Aproximou-se.
No banco do motorista, estava uma senhora idosa,
tremendo de medo. Ele caiu em si.
- Parecia que eu estava em um filme, me assistindo.
Gaguejou. Pediu desculpa. Partiu.
No dia seguinte, vendeu o carro.
- Não confio em mim mesmo ao volante. Eu me
torno outra pessoa. Prefiro não dirigir.
Claro que não é uma receita para todo mundo. Para
ele, funcionou. Anda de ônibus, táxi ou metrô. Sente-se
feliz. Como se tivesse abandonado a pré-história e,
finalmente, ingressado na civilização.
CARRASCO, Walcyr. São Paulo, 2010