No aeroporto
Viajou meu amigo Pedro. Fui levá-lo ao Galeão, onde
esperamos três horas o seu quadrimotor. Durante
esse tempo, não faltou assunto para nos entretermos,
embora não falássemos da vã e numerosa matéria
atual. Sempre tivemos muito assunto, e não deixamos
de explorá-lo a fundo. Embora Pedro seja extremamente parco de palavras, e, a bem dizer, não se digne
de pronunciar nenhuma. Quando muito, emite sílabas;
o mais é conversa de gestos e expressões, pelos quais
se faz entender admiravelmente.
É o seu sistema.
Passou dois meses e meio em nossa casa, e foi hóspede ameno. Sorria para os moradores, com ou sem
motivo plausível. Era a sua arma, não direi secreta, porque ostensiva. A vista da pessoa humana lhe dá prazer. Seu sorriso foi logo considerado sorriso especial,
revelador de suas boas intenções para com o mundo
ocidental e oriental, e em particular o nosso trecho de
rua. Fornecedores, vizinhos e desconhecidos, gratificados com esse sorriso (encantador, apesar da falta de
dentes), abonam a classificação.
Devo dizer que Pedro, como visitante, nos deu trabalho; tinha horários especiais, comidas especiais, roupas
especiais, sabonetes especiais, criados especiais. Mas
sua simples presença e seu sorriso compensariam
providências e privilégios maiores. Recebia tudo com
naturalidade, sabendo-se merecedor das distinções,
e ninguém se lembraria de achá-lo egoísta ou importuno. Suas horas de sono - e lhe apraz dormir não só à
noite como principalmente de dia - eram respeitadas
como ritos sagrados, a ponto de não ousarmos erguer
a voz para não acordá-lo. Acordaria sorrindo, como de
costume, e não se zangaria com a gente, porém nós
mesmos é que não nos perdoaríamos o corte de seus
sonhos. Assim, por conta de Pedro, deixamos de ouvir
muito concerto para violino e orquestra, de Bach, mas
também nossos olhos e ouvidos se forraram à tortura
da tevê. Andando na ponta dos pés, ou descalços,
levamos tropeções no escuro, mas sendo por amor de
Pedro não tinha importância.
Objetos que visse em nossa mão, requisitava-os. Gosta
de óculos alheios (e não os usa), relógios de pulso,
copos, xícaras e vidros em geral, artigos de escritório,
botões simples ou de punho. Não é colecionador;
gosta das coisas para pegá-las, mirá-las e (é seu costume ou sua mania, que se há de fazer) pô-las na boca.
Quem não o conhecer dirá que é péssimo costume,
porém duvido que mantenha este juízo diante de
Pedro, de seu sorriso sem malícia e de suas pupilas
azuis - porque me esquecia de dizer que tem olhos
azuis, cor que afasta qualquer suspeita ou acusação
apressada, sobre a razão íntima de seus atos.
Poderia acusá-lo de incontinência, porque não sabia
distinguir entre os cômodos, e o que lhe ocorria fazer,
fazia em qualquer parte. Zangar-me com ele porque
destruiu a lâmpada do escritório? Não. Jamais me
voltei para Pedro que ele não me sorrisse; tivesse eu
um impulso de irritação, e me sentiria desarmado com
a sua azul maneira de olhar-me. Eu sabia que essas
coisas eram indiferentes à nossa amizade - e, até, que
a nossa amizade lhes conferia caráter necessário de
prova; ou gratuito, de poesia e jogo.
Viajou meu amigo Pedro. Fico refletindo na falta que
faz um amigo de um ano de idade a seu companheiro
já vivido e puído. De repente o aeroporto ficou vazio.
Carlos Drummond de Andrade.