PROVA DE INTERPRETAÇÃO DE TEXTO
PORTUGUÊS INSTRUMENTAL
Há marcas que vivem da inclusão, e outras que vivem da exclusão
Contardo Calligaris
Meu telefone, um iPhone 6, estava cada vez mais lento. Não era por nenhuma das causas apontadas nas inúmeras salas de conversa entre usuários de
iPhones vagarosos.
Era mesmo o processador que estava se tornando exasperadamente
lento, ao ponto em que havia um intervalo sensível de tempo entre digitar e a letra
aparecer na tela.
Deixei para resolver quando chegasse a Nova York, onde, aliás, a coisa
piorou: era suficiente eu tirar o celular do bolso ou deixá-lo num bolso externo (que
não estivesse em contato com o calor do corpo) para que a carga da bateria baixasse, de repente, de 60% a zero.
Pensei que três anos é mesmo o tempo de vida útil para uma bateria. E lá
fui à loja da Apple na Broadway.
Esperei duas horas para enfim ter acesso a alguém que me explicou que
testaria minha bateria. Depois de contemplarmos os gráficos lindos e coloridos
deixados no tablet pelo meu telefone, anunciou que minha bateria ainda não justificava uma troca – no tom pernóstico de um plantonista que sabe que não tem
leitos disponíveis e manda você para casa com aquela dor no peito e a "certeza"
de que "você não está enfartando, deve ser só digestão".
O mesmo jovem propôs uma reinstalação do sistema operacional, – que é
uma trivialidade, mas foi anunciada como se fosse um cateterismo das coronárias.
Passei a noite me recuperando, ou seja, reinstalando aplicativos. Resultado: telefone lento como antes.
Voltei para a Apple (loja da Quinta Avenida), onde descobri que, como na
história do hospital sem leitos, de fato, a Apple não dispunha mais de baterias para
substituir a minha: muitos usuários estavam com o mesmo problema. Por coincidência, tudo conjurava para que eu comprasse um telefone novo.
Nos EUA, a Apple está sendo processada (15 casos coletivos, em diferentes Estados) por piorar propositalmente a experiência dos usuários de iPhone sem
lhes oferecer alternativas –salvo, obviamente, a de adquirir um telefone novo.
A companhia pediu desculpas públicas, mas a humildade não é o forte do
treinamento Apple. Basta se lembrar que o atendimento pós-venda da companhia
se chama (o ridículo não mata ninguém) "genius bar", o balcão dos gênios.
Já pensou: você poderia ligar para seu serviço de TV a cabo porque a
recepção está péssima e alguém diria: "Sim, senhor, pode marcar consulta com o
balcão dos gênios".
A maioria dos usuários não acham isso cômico e despropositado. Por que
será?
Há marcas que vivem de seu poder de inclusão, do tipo "nós fabricamos o
carro que todos podem dirigir". E há marcas que vivem de seu poder de exclusão:
tipo, será que você merece o que estou vendendo?
Você já entrou alguma vez numa loja cara onde os vendedores, envaidecidos pela aura do próprio produto que vendem, olham para você com desprezo,
como se você não fosse um consumidor à altura da loja?
É uma estratégia básica de marketing: primeiro, espera-se que você inveje
(e portanto deseje) o mundo do qual se sente excluído.
Você perguntará: de que adianta, se não poderei adquirir os produtos da
marca? Em geral, nesses casos o projeto é vender os acessórios da casa. Pouquíssimos comprarão o casaco de R$ 15 mil, mas milhares comprarão um lencinho
(com monograma) para se sentirem, assim, membros do clube.
A Apple mantém sua presença no mercado pela ideia de sua superioridade
tecnológica - e pelo design elegante, claro.
Seriamente, alguém que usa processador de texto não deveria escolher
um computador em que não dá para apagar letras da esquerda para a direita. Mas
é como os carros ingleses dos anos 1950: havia a glória de viver perigosamente e
dirigir sem suspensões posteriores independentes (sem capotar a cada curva).
Pouco importam as críticas. A Apple conseguiu convencer seus usuários
de que eles mesmos, por serem usuários, fazem parte de uma arrojada elite tecnológica. Numa loja da Apple, todos, os usuários e os "gênios" vestem (real ou
metaforicamente) a camiseta da marca.
Quer saber o que aconteceu com meu iPhone? Está ótimo. Fui ao Device
Shop, em Times Square, no mesmo prédio do Hard Rock Cafe: atendimento imediato, troca de bateria em dez minutos, conversa agradável. Não havia gênios, só
pessoas competentes. E custou menos de dois terços do que pagaria na Apple.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2018/01/1949427-
ha-marcas-que-vivem-da-inclusao-e-outras-que-vivem-da-exclusao.shtml Acesso em 20
mar. 2018