TEXTO: O legado da servidão
Político, advogado, diplomata, literato e militante abolicionista, Joaquim Nabuco tinha lá sua veia de cientista social.
Logo após a assinatura da Lei Áurea, pondo fim à escravidão, ele vaticinou que o estigma do regime ainda perduraria por
dois séculos na sociedade brasileira. Filho de senhor de engenho e monarquista, Nabuco conhecia como poucos a visão de
mundo das elites da nossa terra. E a História lhe daria inteira razão. A herança cultural da escravidão, oficialmente
abolida em 13 de maio de 1888, permanece ainda hoje assustadoramente viva no Brasil.
O debate sobre a existência, ou não, de racismo entre nós, embora válido, apenas tangencia o problema relacionado
à cultura de resistência à inclusão e ao progresso das pessoas oriundas das classes situadas na base da pirâmide social.
Pois esta discriminação logo superaria a simples questão da cor da pele para se fixar na população pobre de um modo
geral. Negra, mestiça, ou mesmo branca. O rancor dos antigos donos de escravos com a vitória abolicionista seria
transmitido a seus descendentes na forma de arraigado desprezo contra todos que viessem a exercer o mesmo trabalho
daqueles, fossem eles negros ou não. Esse desdém pela ralé seria responsável pela cunhagem de inúmeras expressões
pejorativas para designar “a gente mal nascida”, tais como zé-povinho, patuleia, gentinha, gentalha, choldra, escumalha,
negrada, criouléu e tantas outras. E também pelo mito da indolência do brasileiro.
Mas como nem só de epítetos depreciativos e mitos vive o preconceito, o ranço ideológico da escravidão deitaria
raízes bem mais profundas na mentalidade das elites brasileiras, sob a forma de um olhar dicotômico sobre a própria
condição humana, reclassificada de acordo com a condição social do aspirante à cidadania. Esta deformação está na
origem da hostilidade de boa parte de nossa burguesia aos reclamos de ascensão social das classes mais desfavorecidas. É
comum a objeção: estão ganhando pouco? Ah, mas pra cervejinha do final de semana, eles têm dinheiro; como se o
uísque com os amigos fosse sagrado, mas o lazer do pobre algo imoral. O projeto dos Cieps de Darcy Ribeiro, destinado a
oferecer educação de qualidade às crianças de famílias de baixa renda, foi impiedosamente sabotado pela reação
conservadora, entre outros pretextos, sob a alegação de que as construções “eram caras demais”. “E favelado lá precisa de
quadra poliesportiva e piscina?”, questionava-se.
Não é exatamente por sovinice que, de um modo geral, as elites se opõem às recentes e inéditas políticas públicas de
redistribuição de renda. Afinal, cumprindo-se os desígnios da macroeconomia, mesmo obrigados a pagar mais impostos
para financiar programas sociais e a oferecer salários melhores a seus empregados, os ricos ficaram ainda mais ricos
quando tantos pobres deixaram de ser tão pobres. O problema está no inconformismo dos herdeiros ideológicos do
sistema escravocrata, não necessariamente ricos, com o progressivo desaparecimento das marcas da servidão humana no
cenário social brasileiro. Como dizia uma conhecida socialite há alguns anos, para espanto de suas amigas francesas:
“Adoro o Brasil, pois lá meus empregados contentam-se em comer banana com farinha...”
(Com adaptações, José Carlos Tórtima, “O Globo”, 26/07/2011)