Texto 1
Somos uma sociedade injusta e segregacionista
O fenômeno dos centenas de rolezinhos que ocuparam shoppings centers no Rio e em
São Paulo suscitaram as mais disparatadas interpretações. (...)
Eu, por minha parte, interpreto da seguinte forma tal irrupção:
Em primeiro lugar, são jovens pobres, das grandes periferias, sem espaços de lazer e de
cultura, penalizados por serviços públicos ausentes ou muito ruins como saúde, escola,
infra-estrutura sanitária, transporte, lazer e segurança. Veem televisão cujas propagandas
os seduzem para um consumo que nunca vão poder realizar. E sabem manejar
computadores e entrar nas redes sociais para articular encontros. Seria ridículo exigir deles
que teoricamente tematizem sua insatisfação.
Mas sentem na pele o quanto nossa sociedade é malvada porque exclui, despreza e
mantém os filhos e filhas da pobreza na invisibilidade forçada. O que se esconde por trás
de sua irrupção? O fato de não serem incluídos no contrato social. Não adianta termos uma
"constituição cidadã" que neste aspecto é apenas retórica, pois implementou muito pouco
do que prometeu em vista da inclusão social. Eles estão fora, não contam, nem sequer
servem de carvão para o consumo de nossa fábrica social (Darcy Ribeiro). Estar incluído
no contrato social significa ter garantidos os serviços básicos: saúde, educação, moradia,
transporte, cultura, lazer e segurança. Quase nada disso funciona nas periferias. O que
eles estão dizendo com suas penetrações nos bunkers do consumo? "Oia nóis na fita";
"nois não tamo parado";"nóis tamo aqui para zoar"(incomodar). Eles estão com seu
comportamento rompendo as barreiras do aparheid social.(...)
Continuamos uma Brasilíndia: uma Bélgica rica dentro de uma Índia pobre. Tudo isso os
rolezinhos denunciam, por atos e menos por palavras.
Em segundo lugar, eles denunciam a nossa maior chaga: a desigualdade social cujo
verdadeiro nome é injustiça histórica e social. Releva constatar que, com as políticas
sociais do governo do PT, a desigualdade diminuiu, pois, segundo o IPEA, os 10% mais
pobres tiveram entre 2001-2011 um crescimento de renda acumulado de 91,2%, enquanto
a parte mais rica cresceu 16,6%. Mas esta diferença não atingiu a raiz do problema, pois o
que supera a desigualdade é uma infraestrutura social de saúde, escola, transporte, cultura
e lazer que funcione e seja acessível a todos. Não é suficiente transferir renda; tem que
criar oportunidades e oferecer serviços, coisa que não foi o foco principal no Ministério de
Desenvolvimento Social.
O "Atlas da Exclusão Social" de Márcio Poschmann (Cortez 2004) nos mostra que há cerca
de 60 milhões de famílias no Brasil, das quais cinco mil famílias extensas detém 45% da
riqueza nacional. Democracia sem igualdade, que é seu pressuposto, é farsa e retórica. Os
rolezinhos denunciam essa contradição. Eles entram no "paraíso das mercadorias" vistas virtualmente na TV para vê-las realmente e senti-las nas mãos. Eis o sacrilégio insuportável
pelos donos dos shoppings. Eles não sabem dialogar, chamam logo a polícia para bater e
fecham as portas a esses bárbaros. Sim, bem o viu T.Todorov em seu livro "Os novos
bárbaros": os marginalizados do mundo inteiro estão saindo da margem e indo rumo ao
centro para suscitar a má consciência dos "consumidores felizes" e lhes dizer: esta ordem
é ordem na desordem. Ela os faz frustrados e infelizes, tomados de medo, medo dos
próprios semelhantes que somos nós.
Por fim, os rolezinhos não querem apenas consumir. Não são animaizinhos famintos. Eles
têm fome sim, mas fome de reconhecimento, de acolhida na sociedade, de lazer, de cultura
e de mostrar o que sabem: cantar, dançar, criar poemas críticos, celebrar a convivência
humana. E querem trabalhar para ganhar sua vida. Tudo isso lhes é negado, porque, por
serem pobres, negros, mestiços sem olhos azuis e cabelos loiros, são desprezados e
mantidos longe, na margem.
Esse tipo de sociedade pode ser chamada ainda de humana e civilizada? Ou é uma forma
travestida de barbárie? Esta última lhe convém mais. Os rolezinhos mexeram numa pedra
que começou a rolar. Só parará se houver mudanças.
BOFF, Leonardo. Jornal Zero Hora. 28 jan. 2014. (adaptado). Disponível em: <http://goo.gl/4UeRbD>. Acesso em 05 abr. 2014