Leia o texto a seguir e responda à questão:
Ser ou não ser
Na atualidade, a imagem da juventude está marcada ao mesmo tempo pela ambiguidade
e pela incerteza. Digo ambiguidade, pois se, de um lado, a juventude é sempre exaltada na
contemporaneidade, cantada que é em prosa e verso pelas potencialidades existenciais que
condensaria, por outro a condição jovem caracteriza-se por sua posição de suspensão no
espaço social, que se materializa pela ausência de seu reconhecimento social e simbólico.
Seria em decorrência disso que a incerteza é o que se delineia efetivamente como o futuro
real para os jovens, em todos os quadrantes do mundo. É preciso destacar, antes de tudo, que
a possibilidade de experimentação foi o que passou a caracterizar a condição da adolescência
no Ocidente, desde o final do século 18, quando as idades da vida foram construídas em
conjunção com a família nuclear burguesa, em decorrência da emergência histórica da
biopolítica.
Nesse contexto, a adolescência foi delimitada como o tempo de passagem entre a infância
e a idade adulta, na qual o jovem podia empreender experiências nos registros do amor e
das escolhas profissionais, até que pudesse se inserir no mercado de trabalho e se casar para
reproduzir efetivamente as linhas de força da família nuclear burguesa. Desde os anos 1980,
no entanto, essa figuração da adolescência entrou em franco processo de desconstrução, por
diversas razões.
Antes de mais nada, pela revolução feminista dos anos 1960 e 70, com a qual as
mulheres foram em busca de outras formas sociais de existência, além da condição materna.
Em seguida, porque o deslocamento das mulheres da posição exclusivamente materna
foi o primeiro combate decisivo contra o patriarcado, que forjou nossa tradição desde a
Antiguidade. Finalmente, a construção do modelo neoliberal da economia internacional,
em conjunção com seu processo de globalização, teve o poder de incidir preferencialmente
em dois segmentos da população, no que tange ao mercado de trabalho. De fato, foram os
jovens e os trabalhadores da faixa etária dos 50 anos os segmentos sociais mais afetados pela
voragem neoliberal. Com isso, se os primeiros passaram a se inserir mais tardiamente no dito
mercado, os segundos passaram a ser descartados para ser substituídos por trabalhadores
jovens e mais baratos, pela precariedade que foi então estabelecida no mercado de trabalho.
Foi em consequência desse processo que o tempo de duração da adolescência se alongou
bastante, ficando então os jovens fora do espaço social formal e lançados perigosamente
numa terra de ninguém. Assim, graças à ausência de inserção no mercado de trabalho, a juventude foi destituída de reconhecimento social e simbólico, prolongando-se efetivamente,
não tendo mais qualquer limite tangível para seu término. Despossuídos que foram de
qualquer reconhecimento social e simbólico, aos jovens restaram apenas o corpo e a força
física. É por essa trilha que podemos interpretar devidamente a emergência e a multiplicação
das formas de violência entre os jovens na contemporaneidade.
Esse processo ocorre não apenas no Brasil e na América Latina, mas também em
escala internacional. Pode-se depreender aqui a constituição de uma cultura agonística* na
juventude de hoje. Assim, a violência juvenil transformou-se em delinquência, inserindo-se
efetivamente no registro da criminalidade. No Brasil, os jovens de classe média e das elites
passaram a atacar gratuitamente certos segmentos sociais com violência. De mulheres
pobres confundidas com prostitutas até homossexuais, passando pelos mendigos, a violência
disseminou-se nas grandes metrópoles do país.
Ao fazerem isso, no entanto, seus gestos delinquentes inscrevem-se numa lógica social
precisa e rigorosa. Com efeito, tais segmentos sociais representam no imaginário desses jovens
a decadência na hierarquia social, sendo, pois, os signos do que eles poderão ser efetivamente
no futuro, na ausência do reconhecimento social e simbólico que os marca. A cultura da
força empreende-se regularmente em academias de ginástica, onde os jovens cultuam os
músculos, não apenas para se preparar para os combates cotidianos da vida real, mas para
forjar também um simulacro de força na ausência efetiva de potência, isto é, na ausência de
reconhecimento social e simbólico, lançados que estão aqueles no desamparo.
É nesse registro que se deve inscrever a disseminação do bullying na contemporaneidade.
É preciso dizer, no que concerne a isso, que a provocação e a violência entre os jovens e
crianças é uma prática social antiga. O que é novo, contudo, é a ausência de uma autoridade
que possa funcionar como mediação no combate entre estes e aqueles, o que incrementou
bastante a disseminação dessa prática de violência.
Não obstante tudo isso, a juventude é ainda glorificada como a representação do que seria
o melhor dos mundos possíveis. A juventude seria então a condensação simbólica de todas as
potencialidades existenciais. Contudo, se fazemos isso é porque não apenas queremos cultivar
a aparência juvenil, por meio de cirurgias plásticas e da medicina estética, mas também porque
o código de experimentação que caracterizou a adolescência de outrora se disseminou para a
idade adulta e para a terceira idade. Constituiu-se assim uma efetiva adolescência sem fim na
tradição ocidental, onde se busca pelo desejo a possibilidade de novos laços amorosos e novas
modalidades de realização existencial. (Joel Birman, revista Cult n. 157, maio 2011).
*agonística: relativo a luta, conflito, combate.