Na tradição canônica do Ocidente, o corpo foi encarado
como uma materialidade desvinculada da mente e inferior a esta.
Conhecer é visto como um ato superior a operar; contemplar e
compreender o mundo é superior a agir sobre ele. Nas reflexões
platônicas, a perfeição não pode ser atingida em virtude do corpo.
A matéria imprime um grau de imperfeição que impossibilita a
existência de um universo absolutamente perfeito.
A estruturação do cristianismo, especialmente com Paulo
de Tarso, desenvolve-se a partir de certa tradição judaica em que
a busca da salvação impõe o exercício cotidiano de uma
austeridade expressa no controle do corpo. Já Descartes, no
século XVII, elabora a mais radical reflexão sobre o dualismo
entre mente e matéria, compreendendo a natureza a partir de uma
divisão entre reinos independentes: o da mente (res cogitans) e o
da matéria (res extensa). O corpo é matéria incapaz de
compreender o mundo, tarefa só realizável pelo intelecto.
Ao contrário disso, as tradições afroindígenas não
percebem o ser humano como cindido, e sim como resultado da
interdependência entre todas as coisas. A corporeidade, para
esses saberes, não engloba só a motricidade (entendida como
corpo e movimento), mas também envolve dimensões afetivas,
intelectuais, sociais e espirituais do ser humano.
Luiz Antonio Simas. Umbandas: uma história do Brasil. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2022, p.42-3 (com adaptações).