TEXTO 4
Auto-retrato
Provinciano que nunca soube
Escolher bem uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou cronista de província;
Arquiteto falhado, músico
Falhado (engoliu um dia
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,
Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
E em matéria de profissão
Um tísico profissional.”
(Manuel Bandeira. Poesia completa e prosa.
Rio de Janeiro: Aguilar, 1983)
TEXTO 5
Felicidade clandestina (excerto)
Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos
excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um
busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos
achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois
bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas
possuía o que qualquer criança devoradora de
histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para
aniversário, em vez de pelo menos um livrinho
barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal
da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do
Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes
mais do que vistas. Atrás escrevia com letra
bordadíssima palavras como “data natalícia” e
“saudade”.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda
era pura vingança, chupando balas com barulho.
Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos
imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de
cabelos livres. Comigo exerceu com calma
ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu
nem notava as humilhações a que ela me submetia:
continuava a implorar-lhe emprestados os livros que
ela não lia.”
(Clarice Lispector. Felicidade clandestina: contos. Rio de Janeiro:
Rocco, 1998)