Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios,
nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na
verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava
sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui
percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se
intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade. Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me
senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem
nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou
igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo
isso "fosse mesmo" o que eu sentia – e não possivelmente um equívoco de
sentimento – que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria
acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a
intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas
muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que
se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e
reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim
como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do
mundo era o meu amor apenas livre. E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um
segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo
estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo
grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro
quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não
queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo,
de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo
desmesurado de ratos.
LISPECTOR, Clarice. Perdoando Deus. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 41.
O fragmento evidencia as percepções iniciais da personagem narradora. Tais
percepções, no desenrolar do conto, são caracterizadas pela