Questões de Vestibular UNIFESP 2010 para Vestibular, Língua Portuguesa, Língua Estrangeira e Redação
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As provocações no recreio eram frequentes, oriundas do enfado; irritadiços todos como feridas; os inspetores a cada passo precisavam intervir em conflitos; as importunações andavam em busca das suscetibilidades; as suscetibilidades a procurar a sarna das importunações. Viam de joelhos o Franco, puxavamlhe os cabelos. Viam Rômulo passar, lançavam-lhe o apelido: mestre-cuca!
Esta provocação era, além de tudo, inverdade. Cozinheiro, Rômulo! Só porque lembrava culinária, com a carnosidade bamba, fofada dos pastelões, ou porque era gordo das enxúndias enganadoras dos fregistas, dissolução mórbida de sardinha e azeite, sob os aspectos de mais volumosa saúde?
(...)
Para desesperá-lo, aproveitavam-se os menores do escuro. Rômulo, no meio, ficava tonto, esbravejando juras de morte, mostrando o punho. Em geral procurava reconhecer algum dos impertinentes e o marcava para a vindita. Vindita inexorável.
No decorrer enfadonho das últimas semanas, foi Rômulo escolhido, principalmente, para expiatório do desfastio. Mestrecuca! Via-se apregoado por vozes fantásticas, saídas da terra; mestre-cuca! Por vozes do espaço rouquenhas ou esganiçadas. Sentava-se acabrunhado, vendo se se lembrava de haver tratado
panelas algum dia na vida; a unanimidade impressionava. Mais frequentemente, entregava-se a acessos de raiva. Arremetia bufando, espumando, olhos fechados, punhos para trás, contra os grupos. Os rapazes corriam a rir, abrindo caminho, deixando rolar adiante aquela ambulância danada de elefantíase.
As provocações no recreio eram frequentes, oriundas do enfado; irritadiços todos como feridas; os inspetores a cada passo precisavam intervir em conflitos; as importunações andavam em busca das suscetibilidades; as suscetibilidades a procurar a sarna das importunações. Viam de joelhos o Franco, puxavamlhe os cabelos. Viam Rômulo passar, lançavam-lhe o apelido: mestre-cuca!
Esta provocação era, além de tudo, inverdade. Cozinheiro, Rômulo! Só porque lembrava culinária, com a carnosidade bamba, fofada dos pastelões, ou porque era gordo das enxúndias enganadoras dos fregistas, dissolução mórbida de sardinha e azeite, sob os aspectos de mais volumosa saúde?
(...)
Para desesperá-lo, aproveitavam-se os menores do escuro. Rômulo, no meio, ficava tonto, esbravejando juras de morte, mostrando o punho. Em geral procurava reconhecer algum dos impertinentes e o marcava para a vindita. Vindita inexorável.
No decorrer enfadonho das últimas semanas, foi Rômulo escolhido, principalmente, para expiatório do desfastio. Mestrecuca! Via-se apregoado por vozes fantásticas, saídas da terra; mestre-cuca! Por vozes do espaço rouquenhas ou esganiçadas. Sentava-se acabrunhado, vendo se se lembrava de haver tratado
panelas algum dia na vida; a unanimidade impressionava. Mais frequentemente, entregava-se a acessos de raiva. Arremetia bufando, espumando, olhos fechados, punhos para trás, contra os grupos. Os rapazes corriam a rir, abrindo caminho, deixando rolar adiante aquela ambulância danada de elefantíase.
[Sem-Pernas] queria alegria, uma mão que o acarinhasse, alguém que com muito amor o fizesse esquecer o defeito físico e os muitos anos (talvez tivessem sido apenas meses ou semanas, mas para ele seriam sempre longos anos) que vivera sozinho nas ruas da cidade, hostilizado pelos homens que passavam, empurrado pelos guardas, surrado pelos moleques maiores. Nunca tivera família. Vivera na casa de um padeiro a quem chamava “meu padrinho” e que o surrava. Fugiu logo que pôde compreender que a fuga o libertaria. Sofreu fome, um dia levaram-no preso. Ele quer um carinho, u’a mão que passe sobre os seus olhos e faça com que ele possa se esquecer daquela noite na cadeia, quando os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa em volta de uma saleta. Em cada canto estava um com uma borracha comprida. As marcas que ficaram nas suas costas desapareceram. Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor daquela hora. Corria na saleta como um animal perseguido por outros mais fortes. A perna coxa se recusava a ajudá-lo. E a borracha zunia nas suas costas quando o cansaço o fazia parar. A princípio chorou muito, depois, não sabe como, as lágrimas secaram. Certa hora não resistiu mais, abateu-se no chão. Sangrava. Ainda hoje ouve como os soldados riam e como riu aquele homem de colete cinzento que fumava um charuto.
(Jorge Amado. Capitães da areia.)
I. O fragmento do romance, ambientado na cidade de Salvador das primeiras décadas do século passado, aborda a vida de uma criança em situação de absoluta exclusão social e violência, o que destoa do projeto literário e ideológico dos escritores brasileiros que compõem a “Geração de 30”.
II. Valendo-se das conquistas do Modernismo, o romance apresenta linguagem fluente e acessível ao grande público, utilizando-se de um português coloquial, simples, próximo a um modo natural de falar, com o largo emprego da frase curta e econômica.
III. Sem-Pernas é uma personagem que, embora encarne um tipo social claramente delimitado, o do menino “pobre, abandonado, aleijado e discriminado”, adquire alguma profundidade psicológica, à medida que seu passado e suas experiências dolorosas vêm à tona.
Conforme o texto, está correto o que se afirma apenas em
[Sem-Pernas] queria alegria, uma mão que o acarinhasse, alguém que com muito amor o fizesse esquecer o defeito físico e os muitos anos (talvez tivessem sido apenas meses ou semanas, mas para ele seriam sempre longos anos) que vivera sozinho nas ruas da cidade, hostilizado pelos homens que passavam, empurrado pelos guardas, surrado pelos moleques maiores. Nunca tivera família. Vivera na casa de um padeiro a quem chamava “meu padrinho” e que o surrava. Fugiu logo que pôde compreender que a fuga o libertaria. Sofreu fome, um dia levaram-no preso. Ele quer um carinho, u’a mão que passe sobre os seus olhos e faça com que ele possa se esquecer daquela noite na cadeia, quando os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa em volta de uma saleta. Em cada canto estava um com uma borracha comprida. As marcas que ficaram nas suas costas desapareceram. Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor daquela hora. Corria na saleta como um animal perseguido por outros mais fortes. A perna coxa se recusava a ajudá-lo. E a borracha zunia nas suas costas quando o cansaço o fazia parar. A princípio chorou muito, depois, não sabe como, as lágrimas secaram. Certa hora não resistiu mais, abateu-se no chão. Sangrava. Ainda hoje ouve como os soldados riam e como riu aquele homem de colete cinzento que fumava um charuto.
(Jorge Amado. Capitães da areia.)
[Sem-Pernas] queria alegria, uma mão que o acarinhasse, alguém que com muito amor o fizesse esquecer o defeito físico e os muitos anos (talvez tivessem sido apenas meses ou semanas, mas para ele seriam sempre longos anos) que vivera sozinho nas ruas da cidade, hostilizado pelos homens que passavam, empurrado pelos guardas, surrado pelos moleques maiores. Nunca tivera família. Vivera na casa de um padeiro a quem chamava “meu padrinho” e que o surrava. Fugiu logo que pôde compreender que a fuga o libertaria. Sofreu fome, um dia levaram-no preso. Ele quer um carinho, u’a mão que passe sobre os seus olhos e faça com que ele possa se esquecer daquela noite na cadeia, quando os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa em volta de uma saleta. Em cada canto estava um com uma borracha comprida. As marcas que ficaram nas suas costas desapareceram. Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor daquela hora. Corria na saleta como um animal perseguido por outros mais fortes. A perna coxa se recusava a ajudá-lo. E a borracha zunia nas suas costas quando o cansaço o fazia parar. A princípio chorou muito, depois, não sabe como, as lágrimas secaram. Certa hora não resistiu mais, abateu-se no chão. Sangrava. Ainda hoje ouve como os soldados riam e como riu aquele homem de colete cinzento que fumava um charuto.
(Jorge Amado. Capitães da areia.)