Leia o excerto do livro 24/7: capitalismo tardio e os fins do
sono de Jonathan Crary para responder à questão.
No fim dos anos 1990, um consórcio espacial russo-europeu anunciou que construiria e lançaria satélites que refletiriam a luz do Sol para a Terra. O esquema previa colocar
em órbita uma cadeia de satélites, sincronizados com o Sol,
a uma altitude de 1700 quilômetros, cada um deles equipado com refletores parabólicos retráteis, da espessura de
uma folha de papel. Quando completamente abertos, cada
satélite-espelho, com duzentos metros de diâmetro, teria a
capacidade de iluminar uma área da Terra de 25 quilômetros
quadrados, com uma luminosidade quase cem vezes maior
do que a da Lua. Em princípio, o projeto visava fornecer iluminação para a exploração industrial de recursos naturais em
regiões remotas com longas noites polares, na Sibéria e no
leste da Rússia, permitindo atividade ao ar livre, noite e dia.
Mas o consórcio acabou expandindo seus planos para a possibilidade de oferecer iluminação noturna a regiões metropolitanas inteiras. Calculando que se reduziriam os custos de
energia da iluminação elétrica, o slogan da empresa era “Luz
do dia a noite toda”.
A oposição ao projeto surgiu de imediato e de diversas
frentes. Astrônomos temeram os efeitos nefastos da observação espacial a partir da Terra. Cientistas e ambientalistas
apontaram consequências fisiológicas prejudiciais tanto aos
animais quanto aos humanos, uma vez que a ausência de
alternância regular entre dia e noite interromperia vários padrões metabólicos, inclusive o sono. Associações culturais
e humanitárias também protestaram, alegando que o céu
noturno é um bem comum ao qual toda a humanidade tem
direito, e que desfrutar da escuridão da noite e observar as
estrelas é um direito humano básico que nenhuma empresa
pode eliminar. De qualquer modo, direito ou privilégio, ele já
está sendo violado para mais da metade da população do
planeta, em cidades que estão permanentemente envoltas
na penumbra da poluição e na intensa iluminação.
Defensores do projeto, todavia, afirmaram que tal tecnologia diminuiria o uso noturno de eletricidade e que a perda
da noite e de sua escuridão seria um preço razoável, considerando-se a redução do consumo global de energia. Seja
como for, esse empreendimento, ao fim inviável, ilustra o imaginário contemporâneo, para o qual um estado de iluminação
contínua é inseparável da ininterrupta operação de troca e
circulação globais. Em seus excessos empresariais, o projeto
é uma expressão hiperbólica de uma intolerância institucional
a tudo que obscureça ou impeça uma situação de visibilidade
instrumentalizada e constante.
(24/7: capitalismo tardio e os fins do sono, 2014. Adaptado.)