Leia a crônica “Conto carioca”, de Vinicius de Moraes, para
responder à questão.
O rapaz vinha passando num Cadillac novo pela avenida
Atlântica. Vinha despreocupado, assoviando um blue, os
olhos esquecidos no asfalto em retração. A noite era longa,
alta e esférica, cheia de uma paz talvez macabra, mas o rapaz
nada sentia. Ganhara o bastante na roleta para resolver
a despesa do cassino, o que lhe dava essa sensação de
comando do homem que paga: porque tratava-se de um “duro”,
e o automóvel era o carro paterno, obtido depois de uma promessa de fazer força nos estudos. O show estivera agradável
e ele flertara com quase todas as mulheres da sua mesa. A
lua imobilizava-se no céu, imparticipante, clareando a cabeleira das ondas que rugiam, mas como que em silêncio.
De súbito, em frente ao Lido, uma mulher sentada num
banco. Uma mulher de branco, o rosto envolto num véu branco,
e tão elegante e bonita, meu Deus, que parecia também, em
sua claridade, um luar dormente. O freio de pé agiu quase
automaticamente e a borracha deslizou, levando o carro
maneiroso até o meio-fio, onde estacou num rincho ousado.
Depois ele deu ré, até junto da dama branca.
– Sozinha a essas horas?
Ela não respondeu. Limitou-se a olhar serenamente o
rapaz do Cadillac, com seu olhar extraordinariamente fluido,
enquanto o vento sul agitava-lhe docemente os cabelos cor
de cinza.
– Sabe que é muito perigoso ficar aqui até estas horas,
uma mulher tão bonita?
A voz veio de longe, uma voz branca, branca como a
mulher, e ao mesmo tempo crestada por um ligeiro sotaque
nórdico:
– Perdi a condução... Não sei... é tão difícil arranjar
condução...
O rapaz examinou-a já com olhos de cobiça. Que criatura fascinante! Tão branca... Devia ser uma coisa branca,
um mar de leite, um amor pálido. Suas pernas tinham uma
alvura de marfim e suas mãos pareciam porcelanas brancas.
Veio-lhe uma sensação estranha, um arrepio percorreu-lhe
todo o corpo e ele se sentiu entregar a um sono triste, onde a
volúpia cantava baixinho. Teve um gesto para ela:
– Vem... Eu levo você...
Ela foi. Abriu a porta do carro e sentou-se a seu lado.
Fosse porque a madrugada avançasse, a noite se fizera
mais fria e, ao tê-la aconchegada – talvez emoção –, o rapaz
tiritou. Seus braços eram frios como o mármore e sua boca
gelada como éter. Vinha dela um suave perfume de flores que
o levou para longe. Ela se deixou, passiva, em seus braços,
entregue a um mundo de beijos mansos.
Quando a madrugada rompeu, ele acordou do seu letargo
amoroso. A moça branca parecia mais branca ainda, e agora
olhava o mar, de onde vinha um vento branco. Ele disse:
– Amor, vou levar você agora.
Ela deu-lhe seus olhos quase inexistentes, de tão claros:
– Em Botafogo, por favor.
Tocou o carro. A aventura dera-lhe um delírio de velocidade. Entrou pelo túnel como um louco e fez, a pedido dela, a
curva de General Polidoro num ângulo quase absurdo.
– É aqui – disse ela em voz baixa.
Ele parou. Olhou para ela espantado:
– Por que aqui?
– Eu moro aqui. Venha me ver quando quiser. Muito obrigada por tudo.
E dando-lhe um último longo beijo, frio como o éter, abriu
a porta do carro, passou através do portão fechado do cemitério e desapareceu.
(Para uma menina com uma flor, 2009.)