Para responder à questão, leia o trecho do livro
O homem cordial, de Sérgio Buarque de Holanda.
Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição
brasileira para a civilização será de cordialidade — daremos
ao mundo o “homem cordial”. A lhaneza1
no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros
que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões
de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal.
Seria engano supor que essas virtudes possam significar
“boas maneiras”, civilidade. São antes de tudo expressões
legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo — ela
pode exprimir-se em mandamentos e em sentenças. Entre
os japoneses, onde, como se sabe, a polidez envolve os
aspectos mais ordinários do convívio social, chega a ponto
de confundir-se, por vezes, com a reverência religiosa. Já
houve quem notasse este fato significativo, de que as formas exteriores de veneração à divindade, no cerimonial xintoísta, não diferem essencialmente das maneiras sociais de
demonstrar respeito.
Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista
da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela
pode iludir na aparência — e isso se explica pelo fato de a
atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no
“homem cordial”: é a forma natural e viva que se converteu
em fórmula. Além disso a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando
necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce
que permitirá a cada qual preservar intatas sua sensibilidade
e suas emoções.
Por meio de semelhante padronização das formas exteriores da cordialidade, que não precisam ser legítimas para
se manifestarem, revela-se um decisivo triunfo do espírito
sobre a vida. Armado dessa máscara, o indivíduo consegue
manter sua supremacia ante o social. E, efetivamente, a polidez implica uma presença contínua e soberana do indivíduo.
No “homem cordial”, a vida em sociedade é, de certo
modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em
viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas
as circunstâncias da existência. Sua maneira de expansão
para com os outros reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social, periférica, que no brasileiro — como bom americano — tende a ser a que mais importa. Ela é antes um viver
nos outros.
(O homem cordial, 2012.)
1
lhaneza: afabilidade.