Questões Militares de Português - Interpretação de Textos
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Tendo por base a charge, considere as seguintes afirmativas:
1. O autor aponta a falta de propósito das manifestações, representada na charge pelos cartazes em branco.
2. O autor problematiza a alienação dos brasileiros em época de Copa do Mundo.
3. A linguagem não-verbal enaltece a principal característica brasileira: a paixão pelo futebol.
4. A polissemia do título aproxima as manifestações ocorridas de um de seus principais alvos: o gasto com a Copa do Mundo.
Assinale a alternativa correta.
O projeto de lei que cria o Estatuto da Família colocou na pauta do dia a discussão a respeito do conceito de família. Afinal, o que é família hoje? Alguém aí tem uma definição, para a atualidade, que consiga acolher todos os grupos existentes que vivem em contextos familiares?
A Câmara dos Deputados tem a resposta que considera a certa: “Família é a união entre homem e mulher, por meio de casamento ou de união estável, ou a comunidade formada por qualquer um dos pais junto com os filhos". Essa é a definição aprovada pela Câmara para o projeto cuja finalidade é orientar as políticas públicas quanto aos direitos das famílias – essas que se encaixam na definição proposta –, principalmente nas áreas de segurança, saúde e educação. Vou deixar de lado a discussão a respeito das injustiças, preconceitos e exclusões que tal definição comporta, para conversar a respeito das famílias da atualidade.
Desde o início da segunda metade do século passado, o conceito de família entrou em crise, e uso a palavra crise no sentido mais positivo do termo: o que aponta para renovação e transição; mudança, enfim. Até então, tínhamos, na modernidade, uma configuração social hegemônica de família, que era pautada por um tipo de aliança – entre um homem e uma mulher – e por relações de consanguinidade. As mudanças ocorridas no mundo determinaram inúmeras alterações nas famílias, não apenas em seu desenho, mas, principalmente, em suas dinâmicas.
E é importante aceitar essa questão: não foram as famílias que provocaram mudanças na sociedade; esta é que determinou muitas mudanças nas famílias. Só assim iremos conseguir enxergar que a família não é um agente de perturbação da sociedade. É a sociedade que tem perturbado, e muito, o funcionamento familiar. Um exemplo? Algumas mulheres renunciam ao direito de ficar com o filho recém-nascido durante todo o período da licença-maternidade determinado por lei, porque isso pode atrapalhar sua carreira profissional. Em outras palavras: elas entenderam que a sociedade prioriza o trabalho em detrimento da dedicação à família. É assim ou não é?
Se pudéssemos levantar um único quesito que seria fundamental para caracterizar a transformação de um agrupamento de pessoas em família, eu diria que é o vínculo, tanto horizontal quanto vertical. E, hoje, todo mundo conhece grupos de pessoas que vivem sob o mesmo teto ou que têm relação de parentesco que não se constituem verdadeiramente em família, por absoluta falta de vínculo entre seus integrantes.
Os novos valores sociais têm norteado as pessoas para esse caminho. Vamos lembrar valores decisivos para nossa sociedade: o consumo, que valoriza o trabalho exagerado, a ambição desmedida e o sucesso a qualquer custo; a juventude, que leva adultos, independentemente da idade, a adotar um estilo de vida juvenil, que dá pouco espaço para o compromisso que os vínculos exigem; a busca da felicidade, identificada com satisfação imediata, que leva a trocas sucessivas nos relacionamentos amorosos, como amizades e par afetivo, só para citar alguns exemplos. O vínculo afetivo tem relação com a vida pessoal. O vínculo social, com a cidadania. Ambos estão bem frágeis, não é?
SAYÃO, Rosely. <www.folhaonline.com.br>. Em 29 set. 2015.
( ) O diálogo com o leitor é marcado no texto pelo uso da expressão “alguém aí", na segunda linha, e pelo uso recorrente da interrogação.
( ) A expressão sublinhada em “a Câmara dos Deputados tem a resposta que considera a certa" antecipa para o leitor a adesão da autora à definição de família aprovada para o projeto de lei do Estatuto da Família.
( ) No trecho “direitos das famílias – essas que se encaixam na definição proposta –", a expressão entre travessões alerta o leitor para a restrição do conceito de família mencionado.
( ) As expressões “desde o início da segunda metade do século passado" e “até então" (3º parágrafo) introduzem informações situadas em um mesmo período.
Assinale a alternativa que apresenta a sequência correta, de cima para baixo.
Venício A. Lima
O sempre interessante Boletim UFMG, que traz, a cada semana, notícias do dia a dia da Universidade Federal de Minas Gerais, informa, na edição de 4 de maio, o trabalho desenvolvido por grupo de pesquisa do Departamento de Ciência da Computação (DCC) em torno da “análise de sentimento", que relaciona o sucesso das notícias com sua polaridade, negativa ou positiva.
Utilizando programas de computador desenvolvidos pelo DCC-UFMG, foram identificadas, coletadas e analisadas 69.907 manchetes veiculadas em quatro sites noticiosos internacionais ao longo de oito meses de 2014: The New York Times, BBC, Reuters e Daily Mail. E as notícias foram agrupadas em cinco grandes categorias: negócios e dinheiro, saúde, ciência e tecnologia, esportes e mundo. As conclusões da pesquisa são preciosas.
Cerca de 70% das notícias diárias estão relacionadas a fatos que geram “sentimentos negativos" – tais como catástrofes, acidentes, doenças, crimes e crises. Os textos das manchetes foram relacionados aos sentimentos que elas despertam, numa escala de menos 5 (muito negativo) a mais 5 (muito positivo). Descobriu-se que o sucesso de uma notícia, vale dizer, o número de vezes em que é “clicada" pelo eventual leitor está fortemente vinculado a esses “sentimentos" e que os dois extremos – negativo e positivo – são os mais “clicados". As manchetes negativas, todavia, são aquelas que atraem maior interesse dos leitores.
Embora realizado com base em manchetes publicadas em sites internacionais – não brasileiros –, os resultados do trabalho dos pesquisadores do DCC-UFMG nos ajudam a compreender a predominância do “jornalismo do vale de lágrimas" na grande mídia brasileira.
Para além da partidarização seletiva das notícias, parece haver também uma importante estratégia de sobrevivência empresarial influindo na escolha da pauta negativa. Os principais telejornais exibidos na televisão brasileira, por exemplo, estão se transformando em incansáveis noticiários diários de crises, crimes, catástrofes, acidentes e doenças de todos os tipos. Carrega-se, sem dó nem piedade, nas notícias que geram sentimentos negativos. Mais do que isso: os âncoras dos telejornais, além das notícias negativas, se encarregam de editorializar, fazer comentários, invariavelmente críticos e pessimistas, reforçando, para além da notícia, exatamente seus aspectos e consequências funestos.
Existe, sim, o risco do esgotamento. Cansado de tanta notícia ruim e sentindo-se impotente para influir no curso dos eventos, pode ser que o leitor/telespectador afinal desista de se expor a esse tipo de jornalismo que o empurra cotidianamente rumo a um inexorável “vale de lágrimas" mediavalesco.
Adaptado de <http://observatoriodaimprensa.com.br/jornal-de-ebates/outras-razoes-para-a-pauta-negativa/>. Acesso em 19 mai. 2015.
Venício A. Lima
O sempre interessante Boletim UFMG, que traz, a cada semana, notícias do dia a dia da Universidade Federal de Minas Gerais, informa, na edição de 4 de maio, o trabalho desenvolvido por grupo de pesquisa do Departamento de Ciência da Computação (DCC) em torno da “análise de sentimento", que relaciona o sucesso das notícias com sua polaridade, negativa ou positiva.
Utilizando programas de computador desenvolvidos pelo DCC-UFMG, foram identificadas, coletadas e analisadas 69.907 manchetes veiculadas em quatro sites noticiosos internacionais ao longo de oito meses de 2014: The New York Times, BBC, Reuters e Daily Mail. E as notícias foram agrupadas em cinco grandes categorias: negócios e dinheiro, saúde, ciência e tecnologia, esportes e mundo. As conclusões da pesquisa são preciosas.
Cerca de 70% das notícias diárias estão relacionadas a fatos que geram “sentimentos negativos" – tais como catástrofes, acidentes, doenças, crimes e crises. Os textos das manchetes foram relacionados aos sentimentos que elas despertam, numa escala de menos 5 (muito negativo) a mais 5 (muito positivo). Descobriu-se que o sucesso de uma notícia, vale dizer, o número de vezes em que é “clicada" pelo eventual leitor está fortemente vinculado a esses “sentimentos" e que os dois extremos – negativo e positivo – são os mais “clicados". As manchetes negativas, todavia, são aquelas que atraem maior interesse dos leitores.
Embora realizado com base em manchetes publicadas em sites internacionais – não brasileiros –, os resultados do trabalho dos pesquisadores do DCC-UFMG nos ajudam a compreender a predominância do “jornalismo do vale de lágrimas" na grande mídia brasileira.
Para além da partidarização seletiva das notícias, parece haver também uma importante estratégia de sobrevivência empresarial influindo na escolha da pauta negativa. Os principais telejornais exibidos na televisão brasileira, por exemplo, estão se transformando em incansáveis noticiários diários de crises, crimes, catástrofes, acidentes e doenças de todos os tipos. Carrega-se, sem dó nem piedade, nas notícias que geram sentimentos negativos. Mais do que isso: os âncoras dos telejornais, além das notícias negativas, se encarregam de editorializar, fazer comentários, invariavelmente críticos e pessimistas, reforçando, para além da notícia, exatamente seus aspectos e consequências funestos.
Existe, sim, o risco do esgotamento. Cansado de tanta notícia ruim e sentindo-se impotente para influir no curso dos eventos, pode ser que o leitor/telespectador afinal desista de se expor a esse tipo de jornalismo que o empurra cotidianamente rumo a um inexorável “vale de lágrimas" mediavalesco.
Adaptado de <http://observatoriodaimprensa.com.br/jornal-de-ebates/outras-razoes-para-a-pauta-negativa/>. Acesso em 19 mai. 2015.
Talvez o exemplo mais interessante para ilustrar a indicação de tempo ou de espaço com a mesma palavra seja o verbo “ir". O sentido primeiro (aceitemos isso para efeito de raciocínio) do verbo “ir" é de deslocamento: “alguém vai de A a B" quer dizer que alguém se desloca do ponto A ao ponto B. Trata-se de espaço.
Dizemos também, por exemplo, que a Bandeirantes vai de Piracicaba a S. Paulo. Mas é claro que a rodovia não se desloca: ela começa em uma cidade e termina em outra. Não há sentido de deslocamento nessa oração, mas ainda estamos no domínio do espaço.
Agora, veja-se outro caso: também dizemos que o período colonial vai de 1500 a 1822 (ou a 1808, conforme o ponto de vista). Nesse exemplo, ninguém se desloca, nem se informa sobre dois pontos do espaço, dois lugares extremos. Agora não se trata mais de espaço. Trata-se de tempo. E o verbo é o mesmo.
POSSENTI, Sírio. Analogias. Disponível em:<http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/palavreado/analogias>. Acesso em 23 mai. 2014
Deu no Datafolha que 87% dos brasileiros querem baixar a maioridade penal. Maiorias assim robustas, que já são raras em questões sociais, ficam ainda mais intrigantes quando se considera que, entre especialistas, o assunto é controverso. Como explicar o fenômeno?
Estamos aqui diante de um dos mais fascinantes aspectos da natureza. Se você pretende produzir seres sociais, precisa encontrar um modo de fazer com que eles colaborem uns com os outros e, ao mesmo tempo, se protejam dos indivíduos dispostos a explorá-los. A fórmula que a evolução encontrou para equacionar esse e outros dilemas foi embalar regras de conduta em instintos, emoções e sentimentos que provocam ações que funcionam em mais instâncias do que não funcionam.
Assim, para evitar a superexploração pelos semelhantes, desenvolvemos verdadeiro horror àquilo que percebemos como injustiças. Na prática, isso se traduz no impulso que temos de punir quem tenta levar vantagem indevida. Quando não podemos castigá-los diretamente, torcemos para que levem a pior, o que, além de garantir o sucesso de filmes de Hollywood, torna a justiça retributiva algo popular em nossa espécie.
Isso, porém, é só parte do problema. Uma sociedade pautada apenas pelo ideal de justiça soçobraria. Se cada mínima ofensa exigisse imediata reparação e todos tivessem de ser tratados de forma rigorosamente idêntica, a vida comunitária seria impossível. A natureza resolve isso com sentimentos como amor e favoritismo, que permitem, entre outras coisas, que mães prefiram seus próprios filhos aos de desconhecidos.
Nas sociedades primitivas, bandos de 200 pessoas onde todos tinham algum grau de parentesco, o sistema funcionava razoavelmente bem. Os ímpetos da justiça retributiva eram modulados pela empatia familiar. Agora que vivemos em grupos de milhões sem vínculos pessoais, a vontade de punir impera inconteste.
SCHWARTSMAN, Hélio. Folhaonline, em 24 jun. 2015.
Um dos objetivos de um dicionário é esclarecer o significado das palavras, apresentando as acepções de um vocábulo indo do literal para o metafórico. No caso dos verbos, há também informações sobre a regência.
Entre as acepções para o verbo grifado acima, adaptadas do Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa (Rio de Janeiro: ed. Objetiva, 2001), assinale a que corresponde ao uso no texto.
Deu no Datafolha que 87% dos brasileiros querem baixar a maioridade penal. Maiorias assim robustas, que já são raras em questões sociais, ficam ainda mais intrigantes quando se considera que, entre especialistas, o assunto é controverso. Como explicar o fenômeno?
Estamos aqui diante de um dos mais fascinantes aspectos da natureza. Se você pretende produzir seres sociais, precisa encontrar um modo de fazer com que eles colaborem uns com os outros e, ao mesmo tempo, se protejam dos indivíduos dispostos a explorá-los. A fórmula que a evolução encontrou para equacionar esse e outros dilemas foi embalar regras de conduta em instintos, emoções e sentimentos que provocam ações que funcionam em mais instâncias do que não funcionam.
Assim, para evitar a superexploração pelos semelhantes, desenvolvemos verdadeiro horror àquilo que percebemos como injustiças. Na prática, isso se traduz no impulso que temos de punir quem tenta levar vantagem indevida. Quando não podemos castigá-los diretamente, torcemos para que levem a pior, o que, além de garantir o sucesso de filmes de Hollywood, torna a justiça retributiva algo popular em nossa espécie.
Isso, porém, é só parte do problema. Uma sociedade pautada apenas pelo ideal de justiça soçobraria. Se cada mínima ofensa exigisse imediata reparação e todos tivessem de ser tratados de forma rigorosamente idêntica, a vida comunitária seria impossível. A natureza resolve isso com sentimentos como amor e favoritismo, que permitem, entre outras coisas, que mães prefiram seus próprios filhos aos de desconhecidos.
Nas sociedades primitivas, bandos de 200 pessoas onde todos tinham algum grau de parentesco, o sistema funcionava razoavelmente bem. Os ímpetos da justiça retributiva eram modulados pela empatia familiar. Agora que vivemos em grupos de milhões sem vínculos pessoais, a vontade de punir impera inconteste.
SCHWARTSMAN, Hélio. Folhaonline, em 24 jun. 2015.
Deu no Datafolha que 87% dos brasileiros querem baixar a maioridade penal. Maiorias assim robustas, que já são raras em questões sociais, ficam ainda mais intrigantes quando se considera que, entre especialistas, o assunto é controverso. Como explicar o fenômeno?
Estamos aqui diante de um dos mais fascinantes aspectos da natureza. Se você pretende produzir seres sociais, precisa encontrar um modo de fazer com que eles colaborem uns com os outros e, ao mesmo tempo, se protejam dos indivíduos dispostos a explorá-los. A fórmula que a evolução encontrou para equacionar esse e outros dilemas foi embalar regras de conduta em instintos, emoções e sentimentos que provocam ações que funcionam em mais instâncias do que não funcionam.
Assim, para evitar a superexploração pelos semelhantes, desenvolvemos verdadeiro horror àquilo que percebemos como injustiças. Na prática, isso se traduz no impulso que temos de punir quem tenta levar vantagem indevida. Quando não podemos castigá-los diretamente, torcemos para que levem a pior, o que, além de garantir o sucesso de filmes de Hollywood, torna a justiça retributiva algo popular em nossa espécie.
Isso, porém, é só parte do problema. Uma sociedade pautada apenas pelo ideal de justiça soçobraria. Se cada mínima ofensa exigisse imediata reparação e todos tivessem de ser tratados de forma rigorosamente idêntica, a vida comunitária seria impossível. A natureza resolve isso com sentimentos como amor e favoritismo, que permitem, entre outras coisas, que mães prefiram seus próprios filhos aos de desconhecidos.
Nas sociedades primitivas, bandos de 200 pessoas onde todos tinham algum grau de parentesco, o sistema funcionava razoavelmente bem. Os ímpetos da justiça retributiva eram modulados pela empatia familiar. Agora que vivemos em grupos de milhões sem vínculos pessoais, a vontade de punir impera inconteste.
SCHWARTSMAN, Hélio. Folhaonline, em 24 jun. 2015.
– Colonna, exemplifique para os nossos amigos como é que se pode seguir, ou dar mostras de seguir, um princípio fundamental do jornalismo democrático: fatos separados de opiniões. Opiniões no Amanhã [nome do jornal] haverá inúmeras, e evidenciadas como tais, mas como é que se demonstra que em outros artigos são citados apenas fatos?
– Muito simples – disse eu. – Observem os grandes jornais de língua inglesa. Quando falam, sei lá, de um incêndio ou de um acidente de carro, evidentemente não podem dizer o que acham daquilo. Então inserem no artigo, entre aspas, as declarações de uma testemunha, um homem comum, um representante da opinião pública. Pondo-se aspas, essas afirmações se tornam fatos, ou seja, é um fato que aquele sujeito tenha expressado tal opinião. Mas seria possível supor que o jornalista tivesse dado a palavra somente a quem pensasse como ele. Portanto, haverá duas declarações discordantes entre si, para mostrar que é fato que há opiniões diferentes sobre um caso, e o jornal expõe esse fato irretorquível. A esperteza está em pôr antes entre aspas uma opinião banal e depois outra opinião, mais racional, que se assemelhe muito à opinião do jornalista. Assim o leitor tem a impressão de estar sendo informado de dois fatos, mas é induzido a aceitar uma única opinião como a mais convincente. Vamos ver um exemplo. Um viaduto desmoronou, um caminhão caiu e o motorista morreu. O texto, depois de relatar rigorosamente o fato, dirá: Ouvimos o senhor Rossi, 42 anos, que tem uma banca de jornal na esquina. Fazer o quê, foi uma fatalidade, disse ele, sinto pena desse coitado, mas destino é destino. Logo depois um senhor Bianchi, 34 anos, pedreiro que estava trabalhando numa obra ao lado, dirá: É culpa da prefeitura, que esse viaduto estava com problemas eu já sabia há muito tempo. Com quem o leitor se identificará? Com quem culpa alguém ou alguma coisa, com quem aponta responsabilidade. Está claro? O problema é no quê e como pôr aspas.
ECO, Umberto. Número Zero. Rio de Janeiro: Record, 2015, p. 55-6.
– Colonna, exemplifique para os nossos amigos como é que se pode seguir, ou dar mostras de seguir, um princípio fundamental do jornalismo democrático: fatos separados de opiniões. Opiniões no Amanhã [nome do jornal] haverá inúmeras, e evidenciadas como tais, mas como é que se demonstra que em outros artigos são citados apenas fatos?
– Muito simples – disse eu. – Observem os grandes jornais de língua inglesa. Quando falam, sei lá, de um incêndio ou de um acidente de carro, evidentemente não podem dizer o que acham daquilo. Então inserem no artigo, entre aspas, as declarações de uma testemunha, um homem comum, um representante da opinião pública. Pondo-se aspas, essas afirmações se tornam fatos, ou seja, é um fato que aquele sujeito tenha expressado tal opinião. Mas seria possível supor que o jornalista tivesse dado a palavra somente a quem pensasse como ele. Portanto, haverá duas declarações discordantes entre si, para mostrar que é fato que há opiniões diferentes sobre um caso, e o jornal expõe esse fato irretorquível. A esperteza está em pôr antes entre aspas uma opinião banal e depois outra opinião, mais racional, que se assemelhe muito à opinião do jornalista. Assim o leitor tem a impressão de estar sendo informado de dois fatos, mas é induzido a aceitar uma única opinião como a mais convincente. Vamos ver um exemplo. Um viaduto desmoronou, um caminhão caiu e o motorista morreu. O texto, depois de relatar rigorosamente o fato, dirá: Ouvimos o senhor Rossi, 42 anos, que tem uma banca de jornal na esquina. Fazer o quê, foi uma fatalidade, disse ele, sinto pena desse coitado, mas destino é destino. Logo depois um senhor Bianchi, 34 anos, pedreiro que estava trabalhando numa obra ao lado, dirá: É culpa da prefeitura, que esse viaduto estava com problemas eu já sabia há muito tempo. Com quem o leitor se identificará? Com quem culpa alguém ou alguma coisa, com quem aponta responsabilidade. Está claro? O problema é no quê e como pôr aspas.
ECO, Umberto. Número Zero. Rio de Janeiro: Record, 2015, p. 55-6.
1. Escolher criteriosamente as citações das testemunhas para contemplar pontos de vista divergentes sobre um mesmo fato.
2. Salientar os pontos de vista que mais interessam ao jornalista.
3. Redigir as notícias de tal forma que as opiniões sejam apresentadas como fatos.
4. Citar em primeiro lugar as palavras da testemunha que faz uma análise mais racional dos acontecimentos.
Estão de acordo com o texto as estratégias:
“Enquanto a rata puérpera, impunemente, pacatamente, com o salvo-conduto de sua boa estrela de mãe, Saia, como um anão no meio de enormes gigantes de conto de fada."
O efeito de humor da tirinha abaixo se deve.
Quino
( ) Na função fática, a ênfase se dá ao canal de comunicação, exemplos dessa função de linguagem podem ser extraídos do cotidiano das pessoas, que se cumprimentam, desejam boa tarde, boa noite, etc.
( ) A função referencial tem por objetivo o ato de informar, exemplos dessa função de linguagem podem ser extraídos de textos jornalísticos.
( ) A função conotativa ou apelativa não tem por objetivo despertar a atenção do leitor, bem como persuadi-lo de alguma forma. Exemplos dessa função de linguagem podem ser extraídos de poemas.
( ) Na função metalinguística, explica-se um código com a utilização do próprio código. Essa função está presente nos dicionários e gramáticas, que se valem do próprio código linguístico para apresentar informações acerca desse código.
Mas minha alma estava profundamente amargurada. O encontro daquela tarde, a visão daquele jovem marcado pelo sofrimento, precocemente envelhecido, a crua recordação de um episódio que parecia tão banal... Tentei dormir. Inútil. Meus olhos percorriam a paisagem enluarada, mas ela nada mais era para mim que o pano de fundo de um drama estúpido e trágico.
As aulas tinham começado numa segunda-feira. Escola de periferia, classes heterogêneas, retardatários. Entre eles, uma criança crescida, quase um rapaz.
- Por que você faltou esses dias todos?
- É que nóis mudemo onti, fessora. Nóis veio da fazenda.
Risadinhas da turma.
- Não se diz "nóis mudemo", menino! A gente deve dizer: "nós mudamos", tá?
-Tá, fessora!
No recreio, as chacotas dos colegas: "Oi, nóis mudemo!" "Até amanhã, nóis mudemo!" No dia seguinte, a mesma coisa: risadinhas, cochichos, gozações.
- Pai, não vô mais pra escola
-Oxente! Modi quê?
Ouvida a história, o pai coçou a cabeça e disse:
- Meu fio, num deixa a escola por uma bobagem dessa! Não liga pras gozações da meninada! Logo eles esquece.
Não esqueceram.
Na quarta-feira, dei pela falta do menino. Ele não apareceu no resto da semana, nem na segunda-feira seguinte. Aí me dei conta de que eu nem sabia o nome dele.
Procurei no diário de classe e soube que se chamava Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa. Achei o endereço. Longe, um dos últimos casebres do bairro. Fui lá, uma tarde. O rapazola tinha partido no dia anterior para a casa de um tio, no sul do Pará.
-É, professora, meu fio não aguentou as gozação da meninada. Eu tentei fazê ele continua, mas não teve jeito. Ele tava chateado demais. Bosta de vida! Eu devia di té ficado na fazenda côa famia. Na cidade nóis não tem veis. Nóis fala tudo errado.
Inexperiente, confusa, sem saber o que dizer, engoli em seco e me despedi.
O episódio ocorrera há dezessete anos e tinha caído em total esquecimento, ao menos de minha parte.
Uma tarde, num povoado à beira da Belém-Brasília, eu ia pegar o ônibus, quando alguém me chamou. Olhei e vi, acenando para mim, um rapaz pobremente vestido, magro, com aparência doentia.
- O que é, moço?
- A senhora não se lembra de mim, fessora?
Olhei para ele, dei tratos à bola. Reconstituí num momento meus longos anos de sacerdócio, digo, de magistério. Tudo escuro.
- Não me lembro não, moço. Você me conhece? De onde? Foi meu aluno? Como se chama?
Para tantas perguntas, uma resposta lacônica:
- Eu sou "Nóis mudemo", lembra? Comecei a tremer.
- Sim, moço. Agora lembro. Como era mesmo seu nome?
- Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa.
- O que aconteceu com você?
- O que aconteceu? Ah! fessora! É mais fácil dizê o que não aconteceu. Comi o pão que o diabo amasso. E êta diabo bom de padaria! Fui garimpeiro, fui bóia-fria, um "gato" me arrecadou e levou num caminhão pruma fazenda no meio da mata. Lá trabaiei como escravo, passei fome, fui baleado quando consegui fugi. Peguei tudo quanto é doença. Até na cadeia já fui pará. Nóis ignorante às veis fais coisa sem querê fazé. A escola fais uma farta danada. Eu não devia de té saído daquele jeito, fessora, mas não aguentei as gozação da turma. Eu vi logo que nunca ia consegui fala direito. Ainda hoje não sei.
- Meu Deus!
Aquela revelação me virou pelo avesso. Foi demais para mim. Descontrolada, comecei a soluçar convulsivamente. Como eu podia ter sido tão burra e má? E abracei o rapaz, o que restava do rapaz, que me olhava atarantado.
O ônibus buzinou com insistência. O rapaz afastou-me de mim suavemente.
- Chora não, fessora! A senhora não tem curpa. - Como? Eu não tenho culpa? Deus do céu!
Entrei no ônibus apinhado. Cem olhos eram cem flechas vingadoras apontadas para mim. O ônibus partiu. Pensei na minha sala de aula. Eu era uma assassina a caminho da guilhotina.
Hoje tenho raiva da gramática. Eu mudo, tu mudas, ele muda, nós mudamos, mudamos, mudaamoos, mudaaamooos... Superusada, mal usada, abusada, ela é uma guilhotina dentro da escola. A gramática faz gato e sapato da língua materna - a língua que a criança aprendeu com seus pais, irmãos e colegas - e se torna o terror dos alunos. Em vez de estimular e fazer crescer, comunicando, ela reprime e oprime, cobrando centenas de regrinhas estúpidas para aquela idade.
E os lúcios da vida, os milhares de lúcios da periferia e do interior, barrados nas salas de aula: "Não é assim que se diz, menino!" Como se o professor quisesse dizer: "Você está errado! Os seus pais estão errados! Seus irmãos e amigos e vizinhos estão errados! A certa sou eu! Imite-me! Copie-me! Fale como eu! Você não seja você! Renegue suas raízes! Diminua-se! Desfigure-se! Fique no seu lugar! Seja uma sombra! E siga desarmado pelo matadouro da vida..."
Fonte do texto:http://euterlucia.vilabol.uol.com.br/texto4.html
www.recantodasletras.com.br/pensamentos/3045465
Dados do autor
Nome: Fidêncio Bogo
Professor, escritor e poeta Catarinense viveu no Estado de Tocantins de 1976 até a sua morte, ocorrida em 2014. Trabalhou com educação durante muitos anos e, por esse trabalho, recebeu o título de cidadão Tocantinense em 2009. Publicou 5 livros, foi padre, professor universitário, diretor de faculdade, diretor de escolas de ensino fundamental e médio, conselheiro e presidente de conselhos estadual (TO) e municipal (TO) de educação, entre outros cargos voltados à educação.
Mas minha alma estava profundamente amargurada. O encontro daquela tarde, a visão daquele jovem marcado pelo sofrimento, precocemente envelhecido, a crua recordação de um episódio que parecia tão banal... Tentei dormir. Inútil. Meus olhos percorriam a paisagem enluarada, mas ela nada mais era para mim que o pano de fundo de um drama estúpido e trágico.
As aulas tinham começado numa segunda-feira. Escola de periferia, classes heterogêneas, retardatários. Entre eles, uma criança crescida, quase um rapaz.
- Por que você faltou esses dias todos?
- É que nóis mudemo onti, fessora. Nóis veio da fazenda.
Risadinhas da turma.
- Não se diz "nóis mudemo", menino! A gente deve dizer: "nós mudamos", tá?
-Tá, fessora!
No recreio, as chacotas dos colegas: "Oi, nóis mudemo!" "Até amanhã, nóis mudemo!" No dia seguinte, a mesma coisa: risadinhas, cochichos, gozações.
- Pai, não vô mais pra escola
-Oxente! Modi quê?
Ouvida a história, o pai coçou a cabeça e disse:
- Meu fio, num deixa a escola por uma bobagem dessa! Não liga pras gozações da meninada! Logo eles esquece.
Não esqueceram.
Na quarta-feira, dei pela falta do menino. Ele não apareceu no resto da semana, nem na segunda-feira seguinte. Aí me dei conta de que eu nem sabia o nome dele.
Procurei no diário de classe e soube que se chamava Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa. Achei o endereço. Longe, um dos últimos casebres do bairro. Fui lá, uma tarde. O rapazola tinha partido no dia anterior para a casa de um tio, no sul do Pará.
-É, professora, meu fio não aguentou as gozação da meninada. Eu tentei fazê ele continua, mas não teve jeito. Ele tava chateado demais. Bosta de vida! Eu devia di té ficado na fazenda côa famia. Na cidade nóis não tem veis. Nóis fala tudo errado.
Inexperiente, confusa, sem saber o que dizer, engoli em seco e me despedi.
O episódio ocorrera há dezessete anos e tinha caído em total esquecimento, ao menos de minha parte.
Uma tarde, num povoado à beira da Belém-Brasília, eu ia pegar o ônibus, quando alguém me chamou. Olhei e vi, acenando para mim, um rapaz pobremente vestido, magro, com aparência doentia.
- O que é, moço?
- A senhora não se lembra de mim, fessora?
Olhei para ele, dei tratos à bola. Reconstituí num momento meus longos anos de sacerdócio, digo, de magistério. Tudo escuro.
- Não me lembro não, moço. Você me conhece? De onde? Foi meu aluno? Como se chama?
Para tantas perguntas, uma resposta lacônica:
- Eu sou "Nóis mudemo", lembra? Comecei a tremer.
- Sim, moço. Agora lembro. Como era mesmo seu nome?
- Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa.
- O que aconteceu com você?
- O que aconteceu? Ah! fessora! É mais fácil dizê o que não aconteceu. Comi o pão que o diabo amasso. E êta diabo bom de padaria! Fui garimpeiro, fui bóia-fria, um "gato" me arrecadou e levou num caminhão pruma fazenda no meio da mata. Lá trabaiei como escravo, passei fome, fui baleado quando consegui fugi. Peguei tudo quanto é doença. Até na cadeia já fui pará. Nóis ignorante às veis fais coisa sem querê fazé. A escola fais uma farta danada. Eu não devia de té saído daquele jeito, fessora, mas não aguentei as gozação da turma. Eu vi logo que nunca ia consegui fala direito. Ainda hoje não sei.
- Meu Deus!
Aquela revelação me virou pelo avesso. Foi demais para mim. Descontrolada, comecei a soluçar convulsivamente. Como eu podia ter sido tão burra e má? E abracei o rapaz, o que restava do rapaz, que me olhava atarantado.
O ônibus buzinou com insistência. O rapaz afastou-me de mim suavemente.
- Chora não, fessora! A senhora não tem curpa. - Como? Eu não tenho culpa? Deus do céu!
Entrei no ônibus apinhado. Cem olhos eram cem flechas vingadoras apontadas para mim. O ônibus partiu. Pensei na minha sala de aula. Eu era uma assassina a caminho da guilhotina.
Hoje tenho raiva da gramática. Eu mudo, tu mudas, ele muda, nós mudamos, mudamos, mudaamoos, mudaaamooos... Superusada, mal usada, abusada, ela é uma guilhotina dentro da escola. A gramática faz gato e sapato da língua materna - a língua que a criança aprendeu com seus pais, irmãos e colegas - e se torna o terror dos alunos. Em vez de estimular e fazer crescer, comunicando, ela reprime e oprime, cobrando centenas de regrinhas estúpidas para aquela idade.
E os lúcios da vida, os milhares de lúcios da periferia e do interior, barrados nas salas de aula: "Não é assim que se diz, menino!" Como se o professor quisesse dizer: "Você está errado! Os seus pais estão errados! Seus irmãos e amigos e vizinhos estão errados! A certa sou eu! Imite-me! Copie-me! Fale como eu! Você não seja você! Renegue suas raízes! Diminua-se! Desfigure-se! Fique no seu lugar! Seja uma sombra! E siga desarmado pelo matadouro da vida..."
Fonte do texto:http://euterlucia.vilabol.uol.com.br/texto4.html
www.recantodasletras.com.br/pensamentos/3045465
Dados do autor
Nome: Fidêncio Bogo
Professor, escritor e poeta Catarinense viveu no Estado de Tocantins de 1976 até a sua morte, ocorrida em 2014. Trabalhou com educação durante muitos anos e, por esse trabalho, recebeu o título de cidadão Tocantinense em 2009. Publicou 5 livros, foi padre, professor universitário, diretor de faculdade, diretor de escolas de ensino fundamental e médio, conselheiro e presidente de conselhos estadual (TO) e municipal (TO) de educação, entre outros cargos voltados à educação.
Mas minha alma estava profundamente amargurada. O encontro daquela tarde, a visão daquele jovem marcado pelo sofrimento, precocemente envelhecido, a crua recordação de um episódio que parecia tão banal... Tentei dormir. Inútil. Meus olhos percorriam a paisagem enluarada, mas ela nada mais era para mim que o pano de fundo de um drama estúpido e trágico.
As aulas tinham começado numa segunda-feira. Escola de periferia, classes heterogêneas, retardatários. Entre eles, uma criança crescida, quase um rapaz.
- Por que você faltou esses dias todos?
- É que nóis mudemo onti, fessora. Nóis veio da fazenda.
Risadinhas da turma.
- Não se diz "nóis mudemo", menino! A gente deve dizer: "nós mudamos", tá?
-Tá, fessora!
No recreio, as chacotas dos colegas: "Oi, nóis mudemo!" "Até amanhã, nóis mudemo!" No dia seguinte, a mesma coisa: risadinhas, cochichos, gozações.
- Pai, não vô mais pra escola
-Oxente! Modi quê?
Ouvida a história, o pai coçou a cabeça e disse:
- Meu fio, num deixa a escola por uma bobagem dessa! Não liga pras gozações da meninada! Logo eles esquece.
Não esqueceram.
Na quarta-feira, dei pela falta do menino. Ele não apareceu no resto da semana, nem na segunda-feira seguinte. Aí me dei conta de que eu nem sabia o nome dele.
Procurei no diário de classe e soube que se chamava Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa. Achei o endereço. Longe, um dos últimos casebres do bairro. Fui lá, uma tarde. O rapazola tinha partido no dia anterior para a casa de um tio, no sul do Pará.
-É, professora, meu fio não aguentou as gozação da meninada. Eu tentei fazê ele continua, mas não teve jeito. Ele tava chateado demais. Bosta de vida! Eu devia di té ficado na fazenda côa famia. Na cidade nóis não tem veis. Nóis fala tudo errado.
Inexperiente, confusa, sem saber o que dizer, engoli em seco e me despedi.
O episódio ocorrera há dezessete anos e tinha caído em total esquecimento, ao menos de minha parte.
Uma tarde, num povoado à beira da Belém-Brasília, eu ia pegar o ônibus, quando alguém me chamou. Olhei e vi, acenando para mim, um rapaz pobremente vestido, magro, com aparência doentia.
- O que é, moço?
- A senhora não se lembra de mim, fessora?
Olhei para ele, dei tratos à bola. Reconstituí num momento meus longos anos de sacerdócio, digo, de magistério. Tudo escuro.
- Não me lembro não, moço. Você me conhece? De onde? Foi meu aluno? Como se chama?
Para tantas perguntas, uma resposta lacônica:
- Eu sou "Nóis mudemo", lembra? Comecei a tremer.
- Sim, moço. Agora lembro. Como era mesmo seu nome?
- Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa.
- O que aconteceu com você?
- O que aconteceu? Ah! fessora! É mais fácil dizê o que não aconteceu. Comi o pão que o diabo amasso. E êta diabo bom de padaria! Fui garimpeiro, fui bóia-fria, um "gato" me arrecadou e levou num caminhão pruma fazenda no meio da mata. Lá trabaiei como escravo, passei fome, fui baleado quando consegui fugi. Peguei tudo quanto é doença. Até na cadeia já fui pará. Nóis ignorante às veis fais coisa sem querê fazé. A escola fais uma farta danada. Eu não devia de té saído daquele jeito, fessora, mas não aguentei as gozação da turma. Eu vi logo que nunca ia consegui fala direito. Ainda hoje não sei.
- Meu Deus!
Aquela revelação me virou pelo avesso. Foi demais para mim. Descontrolada, comecei a soluçar convulsivamente. Como eu podia ter sido tão burra e má? E abracei o rapaz, o que restava do rapaz, que me olhava atarantado.
O ônibus buzinou com insistência. O rapaz afastou-me de mim suavemente.
- Chora não, fessora! A senhora não tem curpa. - Como? Eu não tenho culpa? Deus do céu!
Entrei no ônibus apinhado. Cem olhos eram cem flechas vingadoras apontadas para mim. O ônibus partiu. Pensei na minha sala de aula. Eu era uma assassina a caminho da guilhotina.
Hoje tenho raiva da gramática. Eu mudo, tu mudas, ele muda, nós mudamos, mudamos, mudaamoos, mudaaamooos... Superusada, mal usada, abusada, ela é uma guilhotina dentro da escola. A gramática faz gato e sapato da língua materna - a língua que a criança aprendeu com seus pais, irmãos e colegas - e se torna o terror dos alunos. Em vez de estimular e fazer crescer, comunicando, ela reprime e oprime, cobrando centenas de regrinhas estúpidas para aquela idade.
E os lúcios da vida, os milhares de lúcios da periferia e do interior, barrados nas salas de aula: "Não é assim que se diz, menino!" Como se o professor quisesse dizer: "Você está errado! Os seus pais estão errados! Seus irmãos e amigos e vizinhos estão errados! A certa sou eu! Imite-me! Copie-me! Fale como eu! Você não seja você! Renegue suas raízes! Diminua-se! Desfigure-se! Fique no seu lugar! Seja uma sombra! E siga desarmado pelo matadouro da vida..."
Fonte do texto:http://euterlucia.vilabol.uol.com.br/texto4.html
www.recantodasletras.com.br/pensamentos/3045465
Dados do autor
Nome: Fidêncio Bogo
Professor, escritor e poeta Catarinense viveu no Estado de Tocantins de 1976 até a sua morte, ocorrida em 2014. Trabalhou com educação durante muitos anos e, por esse trabalho, recebeu o título de cidadão Tocantinense em 2009. Publicou 5 livros, foi padre, professor universitário, diretor de faculdade, diretor de escolas de ensino fundamental e médio, conselheiro e presidente de conselhos estadual (TO) e municipal (TO) de educação, entre outros cargos voltados à educação.
Mas minha alma estava profundamente amargurada. O encontro daquela tarde, a visão daquele jovem marcado pelo sofrimento, precocemente envelhecido, a crua recordação de um episódio que parecia tão banal... Tentei dormir. Inútil. Meus olhos percorriam a paisagem enluarada, mas ela nada mais era para mim que o pano de fundo de um drama estúpido e trágico.
As aulas tinham começado numa segunda-feira. Escola de periferia, classes heterogêneas, retardatários. Entre eles, uma criança crescida, quase um rapaz.
- Por que você faltou esses dias todos?
- É que nóis mudemo onti, fessora. Nóis veio da fazenda.
Risadinhas da turma.
- Não se diz "nóis mudemo", menino! A gente deve dizer: "nós mudamos", tá?
-Tá, fessora!
No recreio, as chacotas dos colegas: "Oi, nóis mudemo!" "Até amanhã, nóis mudemo!" No dia seguinte, a mesma coisa: risadinhas, cochichos, gozações.
- Pai, não vô mais pra escola
-Oxente! Modi quê?
Ouvida a história, o pai coçou a cabeça e disse:
- Meu fio, num deixa a escola por uma bobagem dessa! Não liga pras gozações da meninada! Logo eles esquece.
Não esqueceram.
Na quarta-feira, dei pela falta do menino. Ele não apareceu no resto da semana, nem na segunda-feira seguinte. Aí me dei conta de que eu nem sabia o nome dele.
Procurei no diário de classe e soube que se chamava Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa. Achei o endereço. Longe, um dos últimos casebres do bairro. Fui lá, uma tarde. O rapazola tinha partido no dia anterior para a casa de um tio, no sul do Pará.
-É, professora, meu fio não aguentou as gozação da meninada. Eu tentei fazê ele continua, mas não teve jeito. Ele tava chateado demais. Bosta de vida! Eu devia di té ficado na fazenda côa famia. Na cidade nóis não tem veis. Nóis fala tudo errado.
Inexperiente, confusa, sem saber o que dizer, engoli em seco e me despedi.
O episódio ocorrera há dezessete anos e tinha caído em total esquecimento, ao menos de minha parte.
Uma tarde, num povoado à beira da Belém-Brasília, eu ia pegar o ônibus, quando alguém me chamou. Olhei e vi, acenando para mim, um rapaz pobremente vestido, magro, com aparência doentia.
- O que é, moço?
- A senhora não se lembra de mim, fessora?
Olhei para ele, dei tratos à bola. Reconstituí num momento meus longos anos de sacerdócio, digo, de magistério. Tudo escuro.
- Não me lembro não, moço. Você me conhece? De onde? Foi meu aluno? Como se chama?
Para tantas perguntas, uma resposta lacônica:
- Eu sou "Nóis mudemo", lembra? Comecei a tremer.
- Sim, moço. Agora lembro. Como era mesmo seu nome?
- Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa.
- O que aconteceu com você?
- O que aconteceu? Ah! fessora! É mais fácil dizê o que não aconteceu. Comi o pão que o diabo amasso. E êta diabo bom de padaria! Fui garimpeiro, fui bóia-fria, um "gato" me arrecadou e levou num caminhão pruma fazenda no meio da mata. Lá trabaiei como escravo, passei fome, fui baleado quando consegui fugi. Peguei tudo quanto é doença. Até na cadeia já fui pará. Nóis ignorante às veis fais coisa sem querê fazé. A escola fais uma farta danada. Eu não devia de té saído daquele jeito, fessora, mas não aguentei as gozação da turma. Eu vi logo que nunca ia consegui fala direito. Ainda hoje não sei.
- Meu Deus!
Aquela revelação me virou pelo avesso. Foi demais para mim. Descontrolada, comecei a soluçar convulsivamente. Como eu podia ter sido tão burra e má? E abracei o rapaz, o que restava do rapaz, que me olhava atarantado.
O ônibus buzinou com insistência. O rapaz afastou-me de mim suavemente.
- Chora não, fessora! A senhora não tem curpa. - Como? Eu não tenho culpa? Deus do céu!
Entrei no ônibus apinhado. Cem olhos eram cem flechas vingadoras apontadas para mim. O ônibus partiu. Pensei na minha sala de aula. Eu era uma assassina a caminho da guilhotina.
Hoje tenho raiva da gramática. Eu mudo, tu mudas, ele muda, nós mudamos, mudamos, mudaamoos, mudaaamooos... Superusada, mal usada, abusada, ela é uma guilhotina dentro da escola. A gramática faz gato e sapato da língua materna - a língua que a criança aprendeu com seus pais, irmãos e colegas - e se torna o terror dos alunos. Em vez de estimular e fazer crescer, comunicando, ela reprime e oprime, cobrando centenas de regrinhas estúpidas para aquela idade.
E os lúcios da vida, os milhares de lúcios da periferia e do interior, barrados nas salas de aula: "Não é assim que se diz, menino!" Como se o professor quisesse dizer: "Você está errado! Os seus pais estão errados! Seus irmãos e amigos e vizinhos estão errados! A certa sou eu! Imite-me! Copie-me! Fale como eu! Você não seja você! Renegue suas raízes! Diminua-se! Desfigure-se! Fique no seu lugar! Seja uma sombra! E siga desarmado pelo matadouro da vida..."
Fonte do texto:http://euterlucia.vilabol.uol.com.br/texto4.html
www.recantodasletras.com.br/pensamentos/3045465
Dados do autor
Nome: Fidêncio Bogo
Professor, escritor e poeta Catarinense viveu no Estado de Tocantins de 1976 até a sua morte, ocorrida em 2014. Trabalhou com educação durante muitos anos e, por esse trabalho, recebeu o título de cidadão Tocantinense em 2009. Publicou 5 livros, foi padre, professor universitário, diretor de faculdade, diretor de escolas de ensino fundamental e médio, conselheiro e presidente de conselhos estadual (TO) e municipal (TO) de educação, entre outros cargos voltados à educação.
Mas minha alma estava profundamente amargurada. O encontro daquela tarde, a visão daquele jovem marcado pelo sofrimento, precocemente envelhecido, a crua recordação de um episódio que parecia tão banal... Tentei dormir. Inútil. Meus olhos percorriam a paisagem enluarada, mas ela nada mais era para mim que o pano de fundo de um drama estúpido e trágico.
As aulas tinham começado numa segunda-feira. Escola de periferia, classes heterogêneas, retardatários. Entre eles, uma criança crescida, quase um rapaz.
- Por que você faltou esses dias todos?
- É que nóis mudemo onti, fessora. Nóis veio da fazenda.
Risadinhas da turma.
- Não se diz "nóis mudemo", menino! A gente deve dizer: "nós mudamos", tá?
-Tá, fessora!
No recreio, as chacotas dos colegas: "Oi, nóis mudemo!" "Até amanhã, nóis mudemo!" No dia seguinte, a mesma coisa: risadinhas, cochichos, gozações.
- Pai, não vô mais pra escola
-Oxente! Modi quê?
Ouvida a história, o pai coçou a cabeça e disse:
- Meu fio, num deixa a escola por uma bobagem dessa! Não liga pras gozações da meninada! Logo eles esquece.
Não esqueceram.
Na quarta-feira, dei pela falta do menino. Ele não apareceu no resto da semana, nem na segunda-feira seguinte. Aí me dei conta de que eu nem sabia o nome dele.
Procurei no diário de classe e soube que se chamava Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa. Achei o endereço. Longe, um dos últimos casebres do bairro. Fui lá, uma tarde. O rapazola tinha partido no dia anterior para a casa de um tio, no sul do Pará.
-É, professora, meu fio não aguentou as gozação da meninada. Eu tentei fazê ele continua, mas não teve jeito. Ele tava chateado demais. Bosta de vida! Eu devia di té ficado na fazenda côa famia. Na cidade nóis não tem veis. Nóis fala tudo errado.
Inexperiente, confusa, sem saber o que dizer, engoli em seco e me despedi.
O episódio ocorrera há dezessete anos e tinha caído em total esquecimento, ao menos de minha parte.
Uma tarde, num povoado à beira da Belém-Brasília, eu ia pegar o ônibus, quando alguém me chamou. Olhei e vi, acenando para mim, um rapaz pobremente vestido, magro, com aparência doentia.
- O que é, moço?
- A senhora não se lembra de mim, fessora?
Olhei para ele, dei tratos à bola. Reconstituí num momento meus longos anos de sacerdócio, digo, de magistério. Tudo escuro.
- Não me lembro não, moço. Você me conhece? De onde? Foi meu aluno? Como se chama?
Para tantas perguntas, uma resposta lacônica:
- Eu sou "Nóis mudemo", lembra? Comecei a tremer.
- Sim, moço. Agora lembro. Como era mesmo seu nome?
- Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa.
- O que aconteceu com você?
- O que aconteceu? Ah! fessora! É mais fácil dizê o que não aconteceu. Comi o pão que o diabo amasso. E êta diabo bom de padaria! Fui garimpeiro, fui bóia-fria, um "gato" me arrecadou e levou num caminhão pruma fazenda no meio da mata. Lá trabaiei como escravo, passei fome, fui baleado quando consegui fugi. Peguei tudo quanto é doença. Até na cadeia já fui pará. Nóis ignorante às veis fais coisa sem querê fazé. A escola fais uma farta danada. Eu não devia de té saído daquele jeito, fessora, mas não aguentei as gozação da turma. Eu vi logo que nunca ia consegui fala direito. Ainda hoje não sei.
- Meu Deus!
Aquela revelação me virou pelo avesso. Foi demais para mim. Descontrolada, comecei a soluçar convulsivamente. Como eu podia ter sido tão burra e má? E abracei o rapaz, o que restava do rapaz, que me olhava atarantado.
O ônibus buzinou com insistência. O rapaz afastou-me de mim suavemente.
- Chora não, fessora! A senhora não tem curpa. - Como? Eu não tenho culpa? Deus do céu!
Entrei no ônibus apinhado. Cem olhos eram cem flechas vingadoras apontadas para mim. O ônibus partiu. Pensei na minha sala de aula. Eu era uma assassina a caminho da guilhotina.
Hoje tenho raiva da gramática. Eu mudo, tu mudas, ele muda, nós mudamos, mudamos, mudaamoos, mudaaamooos... Superusada, mal usada, abusada, ela é uma guilhotina dentro da escola. A gramática faz gato e sapato da língua materna - a língua que a criança aprendeu com seus pais, irmãos e colegas - e se torna o terror dos alunos. Em vez de estimular e fazer crescer, comunicando, ela reprime e oprime, cobrando centenas de regrinhas estúpidas para aquela idade.
E os lúcios da vida, os milhares de lúcios da periferia e do interior, barrados nas salas de aula: "Não é assim que se diz, menino!" Como se o professor quisesse dizer: "Você está errado! Os seus pais estão errados! Seus irmãos e amigos e vizinhos estão errados! A certa sou eu! Imite-me! Copie-me! Fale como eu! Você não seja você! Renegue suas raízes! Diminua-se! Desfigure-se! Fique no seu lugar! Seja uma sombra! E siga desarmado pelo matadouro da vida..."
Fonte do texto:http://euterlucia.vilabol.uol.com.br/texto4.html
www.recantodasletras.com.br/pensamentos/3045465
Dados do autor
Nome: Fidêncio Bogo
Professor, escritor e poeta Catarinense viveu no Estado de Tocantins de 1976 até a sua morte, ocorrida em 2014. Trabalhou com educação durante muitos anos e, por esse trabalho, recebeu o título de cidadão Tocantinense em 2009. Publicou 5 livros, foi padre, professor universitário, diretor de faculdade, diretor de escolas de ensino fundamental e médio, conselheiro e presidente de conselhos estadual (TO) e municipal (TO) de educação, entre outros cargos voltados à educação.
Mas minha alma estava profundamente amargurada. O encontro daquela tarde, a visão daquele jovem marcado pelo sofrimento, precocemente envelhecido, a crua recordação de um episódio que parecia tão banal... Tentei dormir. Inútil. Meus olhos percorriam a paisagem enluarada, mas ela nada mais era para mim que o pano de fundo de um drama estúpido e trágico.
As aulas tinham começado numa segunda-feira. Escola de periferia, classes heterogêneas, retardatários. Entre eles, uma criança crescida, quase um rapaz.
- Por que você faltou esses dias todos?
- É que nóis mudemo onti, fessora. Nóis veio da fazenda.
Risadinhas da turma.
- Não se diz "nóis mudemo", menino! A gente deve dizer: "nós mudamos", tá?
-Tá, fessora!
No recreio, as chacotas dos colegas: "Oi, nóis mudemo!" "Até amanhã, nóis mudemo!" No dia seguinte, a mesma coisa: risadinhas, cochichos, gozações.
- Pai, não vô mais pra escola
-Oxente! Modi quê?
Ouvida a história, o pai coçou a cabeça e disse:
- Meu fio, num deixa a escola por uma bobagem dessa! Não liga pras gozações da meninada! Logo eles esquece.
Não esqueceram.
Na quarta-feira, dei pela falta do menino. Ele não apareceu no resto da semana, nem na segunda-feira seguinte. Aí me dei conta de que eu nem sabia o nome dele.
Procurei no diário de classe e soube que se chamava Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa. Achei o endereço. Longe, um dos últimos casebres do bairro. Fui lá, uma tarde. O rapazola tinha partido no dia anterior para a casa de um tio, no sul do Pará.
-É, professora, meu fio não aguentou as gozação da meninada. Eu tentei fazê ele continua, mas não teve jeito. Ele tava chateado demais. Bosta de vida! Eu devia di té ficado na fazenda côa famia. Na cidade nóis não tem veis. Nóis fala tudo errado.
Inexperiente, confusa, sem saber o que dizer, engoli em seco e me despedi.
O episódio ocorrera há dezessete anos e tinha caído em total esquecimento, ao menos de minha parte.
Uma tarde, num povoado à beira da Belém-Brasília, eu ia pegar o ônibus, quando alguém me chamou. Olhei e vi, acenando para mim, um rapaz pobremente vestido, magro, com aparência doentia.
- O que é, moço?
- A senhora não se lembra de mim, fessora?
Olhei para ele, dei tratos à bola. Reconstituí num momento meus longos anos de sacerdócio, digo, de magistério. Tudo escuro.
- Não me lembro não, moço. Você me conhece? De onde? Foi meu aluno? Como se chama?
Para tantas perguntas, uma resposta lacônica:
- Eu sou "Nóis mudemo", lembra? Comecei a tremer.
- Sim, moço. Agora lembro. Como era mesmo seu nome?
- Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa.
- O que aconteceu com você?
- O que aconteceu? Ah! fessora! É mais fácil dizê o que não aconteceu. Comi o pão que o diabo amasso. E êta diabo bom de padaria! Fui garimpeiro, fui bóia-fria, um "gato" me arrecadou e levou num caminhão pruma fazenda no meio da mata. Lá trabaiei como escravo, passei fome, fui baleado quando consegui fugi. Peguei tudo quanto é doença. Até na cadeia já fui pará. Nóis ignorante às veis fais coisa sem querê fazé. A escola fais uma farta danada. Eu não devia de té saído daquele jeito, fessora, mas não aguentei as gozação da turma. Eu vi logo que nunca ia consegui fala direito. Ainda hoje não sei.
- Meu Deus!
Aquela revelação me virou pelo avesso. Foi demais para mim. Descontrolada, comecei a soluçar convulsivamente. Como eu podia ter sido tão burra e má? E abracei o rapaz, o que restava do rapaz, que me olhava atarantado.
O ônibus buzinou com insistência. O rapaz afastou-me de mim suavemente.
- Chora não, fessora! A senhora não tem curpa. - Como? Eu não tenho culpa? Deus do céu!
Entrei no ônibus apinhado. Cem olhos eram cem flechas vingadoras apontadas para mim. O ônibus partiu. Pensei na minha sala de aula. Eu era uma assassina a caminho da guilhotina.
Hoje tenho raiva da gramática. Eu mudo, tu mudas, ele muda, nós mudamos, mudamos, mudaamoos, mudaaamooos... Superusada, mal usada, abusada, ela é uma guilhotina dentro da escola. A gramática faz gato e sapato da língua materna - a língua que a criança aprendeu com seus pais, irmãos e colegas - e se torna o terror dos alunos. Em vez de estimular e fazer crescer, comunicando, ela reprime e oprime, cobrando centenas de regrinhas estúpidas para aquela idade.
E os lúcios da vida, os milhares de lúcios da periferia e do interior, barrados nas salas de aula: "Não é assim que se diz, menino!" Como se o professor quisesse dizer: "Você está errado! Os seus pais estão errados! Seus irmãos e amigos e vizinhos estão errados! A certa sou eu! Imite-me! Copie-me! Fale como eu! Você não seja você! Renegue suas raízes! Diminua-se! Desfigure-se! Fique no seu lugar! Seja uma sombra! E siga desarmado pelo matadouro da vida..."
Fonte do texto:http://euterlucia.vilabol.uol.com.br/texto4.html
www.recantodasletras.com.br/pensamentos/3045465
Dados do autor
Nome: Fidêncio Bogo
Professor, escritor e poeta Catarinense viveu no Estado de Tocantins de 1976 até a sua morte, ocorrida em 2014. Trabalhou com educação durante muitos anos e, por esse trabalho, recebeu o título de cidadão Tocantinense em 2009. Publicou 5 livros, foi padre, professor universitário, diretor de faculdade, diretor de escolas de ensino fundamental e médio, conselheiro e presidente de conselhos estadual (TO) e municipal (TO) de educação, entre outros cargos voltados à educação.
Mas minha alma estava profundamente amargurada. O encontro daquela tarde, a visão daquele jovem marcado pelo sofrimento, precocemente envelhecido, a crua recordação de um episódio que parecia tão banal... Tentei dormir. Inútil. Meus olhos percorriam a paisagem enluarada, mas ela nada mais era para mim que o pano de fundo de um drama estúpido e trágico.
As aulas tinham começado numa segunda-feira. Escola de periferia, classes heterogêneas, retardatários. Entre eles, uma criança crescida, quase um rapaz.
- Por que você faltou esses dias todos?
- É que nóis mudemo onti, fessora. Nóis veio da fazenda.
Risadinhas da turma.
- Não se diz "nóis mudemo", menino! A gente deve dizer: "nós mudamos", tá?
-Tá, fessora!
No recreio, as chacotas dos colegas: "Oi, nóis mudemo!" "Até amanhã, nóis mudemo!" No dia seguinte, a mesma coisa: risadinhas, cochichos, gozações.
- Pai, não vô mais pra escola
-Oxente! Modi quê?
Ouvida a história, o pai coçou a cabeça e disse:
- Meu fio, num deixa a escola por uma bobagem dessa! Não liga pras gozações da meninada! Logo eles esquece.
Não esqueceram.
Na quarta-feira, dei pela falta do menino. Ele não apareceu no resto da semana, nem na segunda-feira seguinte. Aí me dei conta de que eu nem sabia o nome dele.
Procurei no diário de classe e soube que se chamava Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa. Achei o endereço. Longe, um dos últimos casebres do bairro. Fui lá, uma tarde. O rapazola tinha partido no dia anterior para a casa de um tio, no sul do Pará.
-É, professora, meu fio não aguentou as gozação da meninada. Eu tentei fazê ele continua, mas não teve jeito. Ele tava chateado demais. Bosta de vida! Eu devia di té ficado na fazenda côa famia. Na cidade nóis não tem veis. Nóis fala tudo errado.
Inexperiente, confusa, sem saber o que dizer, engoli em seco e me despedi.
O episódio ocorrera há dezessete anos e tinha caído em total esquecimento, ao menos de minha parte.
Uma tarde, num povoado à beira da Belém-Brasília, eu ia pegar o ônibus, quando alguém me chamou. Olhei e vi, acenando para mim, um rapaz pobremente vestido, magro, com aparência doentia.
- O que é, moço?
- A senhora não se lembra de mim, fessora?
Olhei para ele, dei tratos à bola. Reconstituí num momento meus longos anos de sacerdócio, digo, de magistério. Tudo escuro.
- Não me lembro não, moço. Você me conhece? De onde? Foi meu aluno? Como se chama?
Para tantas perguntas, uma resposta lacônica:
- Eu sou "Nóis mudemo", lembra? Comecei a tremer.
- Sim, moço. Agora lembro. Como era mesmo seu nome?
- Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa.
- O que aconteceu com você?
- O que aconteceu? Ah! fessora! É mais fácil dizê o que não aconteceu. Comi o pão que o diabo amasso. E êta diabo bom de padaria! Fui garimpeiro, fui bóia-fria, um "gato" me arrecadou e levou num caminhão pruma fazenda no meio da mata. Lá trabaiei como escravo, passei fome, fui baleado quando consegui fugi. Peguei tudo quanto é doença. Até na cadeia já fui pará. Nóis ignorante às veis fais coisa sem querê fazé. A escola fais uma farta danada. Eu não devia de té saído daquele jeito, fessora, mas não aguentei as gozação da turma. Eu vi logo que nunca ia consegui fala direito. Ainda hoje não sei.
- Meu Deus!
Aquela revelação me virou pelo avesso. Foi demais para mim. Descontrolada, comecei a soluçar convulsivamente. Como eu podia ter sido tão burra e má? E abracei o rapaz, o que restava do rapaz, que me olhava atarantado.
O ônibus buzinou com insistência. O rapaz afastou-me de mim suavemente.
- Chora não, fessora! A senhora não tem curpa. - Como? Eu não tenho culpa? Deus do céu!
Entrei no ônibus apinhado. Cem olhos eram cem flechas vingadoras apontadas para mim. O ônibus partiu. Pensei na minha sala de aula. Eu era uma assassina a caminho da guilhotina.
Hoje tenho raiva da gramática. Eu mudo, tu mudas, ele muda, nós mudamos, mudamos, mudaamoos, mudaaamooos... Superusada, mal usada, abusada, ela é uma guilhotina dentro da escola. A gramática faz gato e sapato da língua materna - a língua que a criança aprendeu com seus pais, irmãos e colegas - e se torna o terror dos alunos. Em vez de estimular e fazer crescer, comunicando, ela reprime e oprime, cobrando centenas de regrinhas estúpidas para aquela idade.
E os lúcios da vida, os milhares de lúcios da periferia e do interior, barrados nas salas de aula: "Não é assim que se diz, menino!" Como se o professor quisesse dizer: "Você está errado! Os seus pais estão errados! Seus irmãos e amigos e vizinhos estão errados! A certa sou eu! Imite-me! Copie-me! Fale como eu! Você não seja você! Renegue suas raízes! Diminua-se! Desfigure-se! Fique no seu lugar! Seja uma sombra! E siga desarmado pelo matadouro da vida..."
Fonte do texto:http://euterlucia.vilabol.uol.com.br/texto4.html
www.recantodasletras.com.br/pensamentos/3045465
Dados do autor
Nome: Fidêncio Bogo
Professor, escritor e poeta Catarinense viveu no Estado de Tocantins de 1976 até a sua morte, ocorrida em 2014. Trabalhou com educação durante muitos anos e, por esse trabalho, recebeu o título de cidadão Tocantinense em 2009. Publicou 5 livros, foi padre, professor universitário, diretor de faculdade, diretor de escolas de ensino fundamental e médio, conselheiro e presidente de conselhos estadual (TO) e municipal (TO) de educação, entre outros cargos voltados à educação.